Revendo Crimes Costumeiros e Violência Aleatória
Por Ivenio Hermes
A violência letal cotidiana tem contribuído para a criação do hábito de banalizar algumas ações criminosas, criando um senso comum que ao invés de pacificar, vem provocando e justificando alguns crimes. A morte que atinge certos indivíduos, com histórico de uso de drogas e envolvimento com atividades ilegais, parece ser a merecedora ação da justiça que o Estado deixou de promover e passou a ser exercida por qualquer que tenha a coragem de matar outro ser humano, convencido de estar praticando uma ação correta.
O termo “crimes com características de execução” deveria ser aplicado na maioria dos relatos policiais, pois a vingança, o acerto de contas, onde há uma intenção prévia de matar e sem dar à vítima a chance de reagir. É preciso parar de crer que a violência homicida é aleatória e que os crimes não se tornaram tão costumeiros que já nem o percebemos enquanto vidas perdidas, e sim em meras tabelas estatísticas.
O tema da violência letal, com mortes provocadas direta ou indiretamente pela ação de outro ser humano, bem como os números indicativos dessas mortes vinculadas ao índice de solução de crimes e seu efeito punitivo fundamentado na justiça estatal, tem sido revisto dando ênfase ao direito fundamental à vida e à segurança. Nessa abordagem diferente, a UNODOC – United Nations Office on Drugs and Crime – (Departamento Sobre Drogas e Crime das Nações Unidas), estabeleceu um documento específico, baseado em metodologias internacionais de pesquisa da violência, para criar a Agenda Global Para o Desenvolvimento no Período Pós-2015.
Centralizando o assunto na individualidade do ser humano e em como o respeito aos direitos humanos são imperativos nos processos de desenvolvimento, as metas para ações protetivas estão eivadas na construção de um conhecimento transparente e apoio às pesquisas de vitimização para serem utilizados como termômetro da evolução da sociedade.
No conjunto de cinco grandes transformações essenciais para garantir que os objetivos de desenvolvimento sejam alcançados, Ferreira (2013, p. 14) publicou na sua análise no manual IMVF Policy paper 1/2013:
Construir a paz e instituições eficazes, abertas e transparentes para todos. Estar livre do conflito e da violência é um direito fundamental e uma base essencial para a construção de sociedades pacíficas e prósperas. É preciso reconhecer a paz e a boa governação como um elemento central do bem-estar, não como um extra opcional.
Para construir as diretrizes e unificar metodologias, em 27 e 28 de Janeiro de 2014, estudiosos do mundo inteiro se reuniram no Rio de Janeiro, e através dos debates on-line da Agenda Global Para Criação de Indicadores de Justiça e Violência Para o Desenvolvimento no Período Pós-2015, e das muitas conclusões extraídas, a unificação de modelos é deveras importante para que as metas sejam alcançadas.
Sob a metodologia de unificação de meios mensuradores da violência, os assassinatos precisam parar de ser vistos como um fenômeno aleatório e desconsiderar sua repetição em índices preocupantes.
Esses crimes são costumeiros e seguem certos padrões claros para serem tratados como ocasionais, pelo contrário, sua repetição é um sério indicativo de impunidade que por sua vez, é reconhecida não só com a ausência de ações policiais no binômio prevenção/redução, mas na incapacidade de se fazer o ciclo completo da justiça acontecer. Isto é, somente uma investigação criminal que determine a real autoria do crime e provas suficientes para a punição do autor ou a excludente de ilicitude que o ampare, são consideradas ações completas do ciclo persecutório, sendo que os casos arquivados em decorrência do tempo, da falta de capacidade investigativa e da incompatibilidade da força policial com a demanda criminal, não são contados como situações exitosas, pelo contrário, somente exibem a incapacidade do estado de fornecer o serviço básico de proteção os cidadão.
Sem proteção, com medo e sendo testemunha da impunidade de crimes costumeiros, o homem perde gradualmente sua qualidade de vida, como podemos inferir do argumento da página 6 do documento da UNODOC:
Fear of violence, corruption, a culture of impunity and a lack of accountability threaten the legitimacy of the social contract, undermine the rule of law and slow, and perhaps reverse, development progress.
O medo da violência, da corrupção, uma cultura de impunidade e falta de transparência ameaçam a legitimidade do contrato social, atentam contra o Estado de Direito e reduzem, e talvez reverter o progresso do desenvolvimento.
A responsabilidade do Estado é grande demais com as futuras gerações e a violência precisa ser esmiuçada em parcelas, cuja mensuração filtre os diversos indicativos de vitimização. A violência letal intencional se subdivide em diversas ações que provocam a morte imediata ou posterior, mas que conserve relação causal com a primeira. Neste sentido, os indicadores de crimes violentos letais intencionais, lançam luz sob a parcela obscurecida dos índices, como os infanticídios de recém nascidos, as mortes dentro dos estabelecimentos prisionais, as resultantes da ação legal e excludentes de ilicitudes dos operadores da lei, os crimes cuja causa nunca são determinadas e permanecem sem esclarecimento, enfim, todos aqueles em que se observa outras nuances causadoras onde haja a violência implícita, como o roubo, estupro, vítimas de disparo de arma de fogo acidental ou colateral (balas perdidas), dentre outros.
Portanto, a medição da violência, não somente nesse recorte letal, abrangida pelo UNODOC – United Nations Office on Drugs and Crime, resgata a busca pela paz e a recuperação do caráter pacificador das polícias nas relações humanas, ampliando o mero conceito de combate ao crime. Ao fazer isso, o documento que mensura e estabelece metas para o desenvolvimento humano, nos reapresenta o direito à vida como o valor mais importante a ser protegido, nele incluindo a qualidade de vida para que essa valha a pena ser vivida.
O Estado precisa reencontrar o cidadão no processo de pacificação, fazendo-o voltar a crer na efetividade do sistema completo de segurança pública e perceber que está havendo um avanço gradual contra a impunidade, em todos os níveis, perdendo o sentimento de se sentir “vingado” com as essas execuções sumárias de quem quer que seja, não importando a prévia “passagem pela polícia”.
Quando voltar a diferenciar a violência aleatória do crime costumeiro, deixando de achar oportuna uma justiça letal e desigual causada a outrem, a sociedade voltará a sonhar com evolução e como o retorno da qualidade de vida.
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SOBRE O AUTOR:
Ivenio Hermes é especialista em políticas e gestão em segurança pública e escritor ganhador do prêmio literário Tancredo Neves; colaborador e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; consultor de segurança pública da OAB/RN Mossoró; pesquisador da violência homicida no Rio Grande do Norte para o COEDHUCI/RN, e publica artigos com ênfase na área de criminologia, direitos humanos, direito e ensino policial.
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REFERÊNCIAS:
Ferreira, Patrícia Magalhães (2013); A Agenda pós-2015 para o Desenvolvimento: da Redução da Pobreza ao Desenvolvimento Inclusivo? IMVF Policy paper 1/2013, Agosto, Lisboa.
United Nations OHCR/UNDP, 2014. Governance and Human Rights: Criteria and Measurement Proposals for a post-2015 Development Agenda. Expert Consultation, Meeting Report from 13-14 November 2012.
Justice and Violence Indicators for the Post-2015 Development Agenda (Report) Rio de Janeiro, Brazil January 27 and 28, 2014
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DIREITOS AUTORAIS E REGRAS PARA REFERÊNCIAS:
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HERMES, Ivenio. Desenvolvimento Humano Versus Violência: Revendo Crimes Costumeiros e Violência Aleatória. (2014) Disponível em: < http://j.mp/Vdpewm >. Publicado em: 12 ago. 2014.