Por Ivenio Hermes
A escuridão do caos de insegurança vivida no Brasil não é algo atual, e sua análise vem sendo feita por especialistas, pelo menos, desde meados da década de 70, e nessa época já se indicava um crescimento da violência e da criminalidade. Naqueles tempos, mesmo diante da escassez dos meios de consubstanciação de dados e sem paradigmas de atuação institucional, alguns estudiosos da área de segurança inseridos nas formulações de políticas de contenção, e pouco preocupados com a solução de conflitos, criam que o modelo repressivo e opressivo seria eficaz.
Contudo, outras grandes mentes se voltaram para o problema nacional, e entenderam que ações paralelas deveriam ser adotadas para não transformar as ações, quaisquer que fossem, em paliativos de boa aparência, cujos resultados em longo prazo seria a armação de uma bomba relógio que explodiria no colo das futuras gerações.
O Barro do Oleiro
Com as polícias, mesmo com anos e anos de fundação, agindo ainda de forma desvinculada da sociedade, trabalhando de acordo com o prevalecimento político, a matéria prima, o barro na mão do oleiro e pronto para ser moldado, foi utilizado, com exceções pontuais, como massa de manobra contra quem discordasse do conceito vigente de ordem pública, desperdiçando tempo precioso na criação da identidade das polícias.
Surgia no imaginário de todos, e se construía o senso comum conflitante da abordagem científica, de que o crime e a violência, e especial a homicida, deveria ser controlada pela “força física e virilidade, em detrimento de uma outra noção que enfoca a administração de conflitos e o relacionamento direto com o cidadão.” (PONCIONI, 2005, p. 598).
O modelo de atuação policial adotado era equivocado e ao mesmo tempo estúpido, porque era a contínua repetição de erros já vistos no passado, e os direitos das pessoas eram violados pela atuação padrão policial amadorística, que resolvia os problemas sem técnica e na base do improviso, pois o homem era preparado para trabalhar sob a premissa basilar de concentrar esforços, regular comportamentos e dirigir forças contra o inimigo, mas que se tratava da sociedade, do próprio meio de onde o agente da lei emergia, fazendo-o se tornar um ser dúbio, violador de direitos, cujos erros antes aceitos pelo Estado, comumente era notado quando sua ação atingia membros ligados às elites políticas, aumentando a falta de credibilidade desses homens por parte da massa social que os mirava de forma distante e desconfiada.
Os policiais não eram reconhecidos profissionais e sim temidos atores do Estado, criados para impor o poder pelo medo e do medo obter mais poder, reforçando o modelo comportamental do anti-herói, temido por uns, odiado por outros, e amado por poucos.
Esse equívoco vem de tão longe que já era descrito por observadores comportamentais como o grande Azevedo (1890, p.63):
“A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estavam, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho”.
O ódio motivador foi misturado ao barro do oleiro na moldagem do policial, e quando toda essa realidade que não divergia muito do imaginário popular, algo que observadores perceberam e especialistas apontaram, mas o barro se tornara um vaso sem muitos atrativos, sem a simpatia do povo e desprezado pelos detentores do poder.
O Vaso Desprezado
Demorou muito para que poucos pudessem tentar desfazer o erro que vinha sendo praticado há muito tempo. Foi desse entendimento que adveio a necessidade de transformar o policial brasileiro em um verdadeiro profissional, que fosse reconhecido e não antagonizado, respeitado e não temido, um bem social e não um mal necessário.
Enquanto as polícias federais despertaram um pouco antes para sua recriação, já as estaduais continuaram presas ao sistema que convenientemente dirige suas ações, ora privilegiando uma, ora outra, negociando salários e cargos para manter a subserviência como item mais valorativo dessa relação polícia x governo estadual.
O recrudescido policial precisou ser quebrado e refeito, e nesse processo, muitos não se adaptaram e se perderam nas duas vertentes de polícia. A que treinava para lidar com cidadão diretamente continuou seguindo a doutrina militarizada, enraizada até nos seus códigos e até hoje pagam o preço alto de viverem sob o paradoxo de serem policiais agora remodelados para servir, proteger e promover os direitos humanos, e ao mesmo tempo, conviver com a denominação militar que tripudia sobre seus direitos, até de se manifestarem com liberdade. E a outra vertente seria aquele que levaria o criminoso a receber as sanções descritas nas legislações e merecidas pela sua conduta desviante.
Essa seria a polícia da investigação, que com o tempo também teve sua orientação desvirtuada da pacificação e voltada para a predominância da formação jurídica, criando uma noção de atividade policial que se utiliza do uso da lei criminal como instrumento de controle do crime, de coerção da conduta desviante pelo poder punitivo que embora não seja dela, dela se acerca pelo tratamento jurídico que recebe.
Boas práticas promotoras da pacificação deram lugar ao pragmatismo punitivo conforme nos diz Kant de Lima (2003, p. 52):
“A investigação busca menos a apuração do crime e mais a identificação, na ‘clientela marginal’ da organização, de possíveis autores dos crimes. A função policial não está orientada para a resolução de conflitos e sim para a “inexorável punição dos transgressores”.
Ou seja, o vaso continua sem o respeito que poderia receber, se a valorização que lhe seria garantida, e se empederniza pelo erro da busca da valorização sem antes se tornar algo que seja visto como bom e necessário pela sociedade. Os policiais continuam na mesma orientação que não os aproxima da sociedade, seja devido ao viés militar distorcido, seja pela excessiva valorização da veia jurídica dos encarregados de aplicar a lei.
O equilíbrio precisa ser restabelecido ou o exercício da atividade policial nunca será um meio de pacificação, de promoção dos direitos humanos, pois os próprios conflitos internos entre os membros das polícias apontam para conflitos maiores, que saem de dentro das portas dos estabelecimentos policiais e se exteriorizam de forma a continuar despertando a antipatia popular.
O desentendimento que impede o êxito das polícias precisa ser reconsiderado, os conflitos internos precisam ser pacificados para poderem sair para a prática, imbuídos do verdadeiro empenho de promover a paz, usando habilidades diversas, relacionadas mais às ciências humanas e à mediação de conflitos próprios da natureza humana e presentes no cotidiano das relações interpessoais.
Sem esse problema resolvido, as polícias continuarão sendo um vaso desprezado, a personificação de uma polícia que, de fato, nunca existiu, foi apenas o devaneio de quem sonhou com policiais guardiães e não como títeres ou modelos atuando em uma função policial desassociada da pacificação.
_______________
SOBRE O AUTOR:
Ivenio Hermes é especialista em políticas e gestão em segurança pública e escritor ganhador do prêmio literário Tancredo Neves; colaborador e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; consultor de segurança pública da OAB/RN Mossoró; pesquisador da violência homicida no Rio Grande do Norte para o COEDHUCI/RN, e publica artigos com ênfase na área de criminologia, direitos humanos, direito e ensino policial.
_______________
REFERÊNCIAS:
PONCIONI, Paula. O Modelo Policial Profissional e a Formação do Futuro Policial Nas Academias de Polícia do Rio de Janeiro. Em Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 3, p. 585-610, set./dez. 2005
AZEVEDO, Aluísio de. O cortiço. Rio de Janeiro: Ática, 1991.
KANT DE LIMA, Roberto (1995), A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro. Seus dilemas e paradoxos. 2ª edição revista. Editora Forense, Rio de Janeiro.
BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. Trad. Ana Luísa Amêndola Pinheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
_______________
DIREITOS AUTORAIS E REGRAS PARA REFERÊNCIAS:
É autorizada a reprodução do texto e das informações em todo ou em parte desde que respeitado o devido crédito ao(s) autor(es).
HERMES, Ivenio. A Polícia que Nunca Existiu: Modelos Desassociados da Pacificação. Disponível em: < http://j.mp/Vdpewm >. Publicado em: 11 ago. 2014.