Me acometeu de repente, talvez seja grave, alguns a chamam de Síndrome de Policarpo Quaresma, para alguns pode ser fatal. Embora haja antigos relatos da doença entre nós, ela nunca havia se manifestado de modo tão endêmico quanto nos últimos anos. Os doutores no assunto encontram dificuldades para analisar o flagelo. Alguns afirmam que nos foi passado por antigos viajantes, que foi se reproduzindo de papel em papel. Quando passou do papel ao computador tornou-se vírus e abateu milhares, milhões naquele junho.
Os sintomas se manifestam de modo evidente. Os acometidos em nossa região convertem-se rapidamente em uma aberração, Blanka, Frankstein dos Trópicos, devoradores de órgãos e corpos do além mar: um cérebro de idealista alemão aqui, um coração de literato francês acolá, tripas de revolucionário russo para encorpar, olhos de renascentista italiano para temperar, carne de africano para fortificar, uma pitada de sagacidade judaica e malícia romana para prosperar, além de um espírito ibérico para encarnar. Tudo costurado feito buchada em pele de índio verde, índio artificial. Devorador de órgãos, zumbi da floresta, antropófago tapuia.
“Mas logo agora?” indagaram, “mas tão jovem”, lamentaram. Fato é que o flagelo é um democrata convicto, não distingue suas vítimas. Meu ocaso se deu na primavera que assolou Natal em 2011, uma mutação tropical do mesmo flagelo que assolou o mundo nesse ano. Nas jornadas, durante a grande epidemia que assolou o país dois anos depois, o flagelo se cobriu de preto, encobriu o rosto, fez da rua um palco. Uma mutação diferente daquele agente infeccioso que acometeu São Paulo na década de 20 do século passado. Com seus desdobramentos em todo o país na década seguinte. Mas ambos os casos são caracterizados pelo mesmo sintoma principal: um delírio patológico de grandeza. Não sei quanto tempo de lucidez nos resta, escrevo com o pouco de consciência que o flagelo me deixou.
Muitos foram os que nos antecederam nesse estágio da doença, sempre com a mesma ladainha, afinal os pensadores doentes predominam na história da filosofia, disse uma vez um doente alemão. O mesmo que acreditava que “num homem são as deficiências que filosofam, no outro as riquezas e forças”. Há muito acometido pelas diversas formas da doença, habituamos a pensar com a nossas deficiências. Ser brasileiro consiste em compartilhar dos mesmos defeitos. Macunaíma nos unifica com seus vícios.
O flagelo se transmuta em diversas formas: tropicalista, indigenista, sertanista, modernista, militarista, futebolista, anarquista, a literatura médica é vasta nas classificações dos diversos graus da doença. Todas evoluem para o mesmo quadro clínico: um atrofiamento da capacidade epistemológica. Muitos vícios foram criados, enaltecidos; quanto mais grotesco melhor. O objetivo final é ser diferente, peculiar, exótico. O excêntrico é o que mais se destaca. Queremos ser vistos, não admirados ou compreendidos. Não ganhamos, batalhamos; não perdemos, entregamos. Quando somos vistos, nos vestimos com nossa roupa dramática de domingo, melancolicamente trançada com drama ibérico, latino, grego. O flagelo faz do mundo um palco, nos impele a atuar.
Vê esse Titã despertado em junho? Não há demasiado suspiro em seu despertar? É o despertar do próprio flagelo, sua insana grandeza, sua gigante natureza. Muitos povos pereceram nesse estágio da doença. Há quem diga que os gregos foram os primeiros a serem acometidos pelo flagelo, outros afirmam que os egípcios foram vitimados antes deles, há ainda aqueles que defendem uma origem hebraica, babilônica, mas todos concordam que só há dois destinos para os povos vitimados: ou experimentam uma “embriaguez de convalescença” e criam sua própria cura, ou se esfarelam, petrificam, tornam-se múmias, empoeiradas religiões, cadavéricas estátuas, saem da vida e entram para a história, viram lixo universal. Além-mundos, flagelos, contaminam novos povos, alimentam o ciclo. Desconfio que flagelos são fantasmas de povos moribundos e assombrados.
Fato é que já nascemos doentes. Não temos o consolo de culpar o flagelo pela nossa decadência, já que nunca fomos grandes. Grande fracasso, grande ocaso, porque cai na tentação de Fausto? Mefistófeles aqui não reina.
Como te entendo Policarpo Quaresma, idealistas não sobrevivem nessa terra.