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Sobre Pastor Eurico, Xuxa e Livia Marine

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Emanuel Freitas

Doutorando em Sociologia (UFC)

Professor de Sociologia (UFERSA)

 Na última semana a apresentadora Xuxa Meneghel fez, involuntariamente, um grande serviço à nação: mostrou-nos como funciona o fundamentalismo religioso cristão em nosso meio. Foi à votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal, no último dia 21, o Projeto de Lei 7672/10 que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente e assegura a esses cidadãos o direito de serem educados sem a utilização de castigos corporais ou tratamento cruel, o que ficou conhecido como “Lei da Palmada”.

Mas, por quê Xuxa estava ali? Simples: foi ela a responsável pela divulgação e campanha nacional em favor da aprovação dessa lei. A “rainha dos baixinhos” foi a “madrinha contra a palmada”. Nada mais legítimo do que convocá-la para se fazer ali presente. Contudo, Xuxa não poderia fazer uso da palavra, conforme diz o regimento. Não era uma Audiência Pública, como já houve tantas em que ouvimos pastores (como Silas Malafaia) e lideranças religiosas (como Marisa Lobo e Padre Roger) a pronunciarem suas diatribes, pondo em xeque nossa laicidade.

Pois bem, a bancada evangélica foi, durante todo o processo, sistematicamente contra. Alegou-se que o projeto interferia na forma como os pais deveriam educar seus filhos. Na verdade, que o Estado não deveria intervir no espaço da família (Ressalte-se que são esses mesmos parlamentares que estão à caça da aprovação do “Estatuto da família”, que faz o Estado legitimar e dizer o que deve ser uma família. Ou seja, para seus interesses, é bom que o Estado intervenha, mas não para os interesses da coletividade. Entenderam?). O fato é que reiteradas vezes a bancada conseguiu adiar a votação do projeto.

Mas, veio a votação. Xuxa estava ali como convidada. Pastor Eurico também, mas como membro da comissão. Um pernambucano da mesma agremiação partidária de Eduardo Campos. Pois bem, o deputado tomou a palavra e disse ser Xuxa indigna de ali estar por ter cometido “a maior violência contra crianças em um filme pornográfico”. Referia-se ele ao filme “Amor, estranho amor”, em que a apresentadora aparece em cena com um adolescente. Os deputados, em uníssono, sufocaram a voz do deputado-pastor, em protesto contra sua truculência, contra seu despropósito.

Dias antes, Pastor Eurico havia protocolado a nova versão do projeto da “Cura Gay”, na mesma semana em que Marisa Lobo tivera seu registro de psicóloga cassado por operar a “cura gay” numa”‘psicologia cristã”, ferindo o código profissional da Psicologia. Pastor Eurico foi destituído da comissão pelo deputado Beto Albuquerque. Bom mesmo seria se o povo pernambucano o destituísse do Parlamento.

Mas, o que podemos tirar disso? Eurico foi atrás de algo no passado de Xuxa que a desabonasse. Não foi tratar dos problemas do projeto, de seus méritos, mas sim de “problemas” (segundo ele, claro) na vida da apresentadora que, segundo a moral que diz seguir, a desabonariam. Em 2012, a bancada, na pessoa do senador Magno Malta, utilizou-se do mesmo mecanismo para desabonar a escolha de Dilma para a Secretaria de Mulheres: para eles, Eleonora Menicucci não poderia ocupar o cargo por ser “sodomita e abortista”. Nada técnico que a desabonasse, apenas discordância com seu credo cristão.

Pois bem, mas o que vemos nas igrejas evangélicas? Assaltantes, traficantes, drogados, adulteros, sonegadores, adeptos de outras religiões e uma série de categorias que não caem na aprovação da moral cristã e que são plenamente bem-vindos. Basta a esses sujeitos “aceitarem Jesus” para terem seu passado negado, para se tornarem homens de bem. Basta ver aqui (https://www.youtube.com/watch?v=9hHgseSYVzA) uma parte do “testemunho” de Micarla de Souza, ex-prefeita de Natal, quando em 2011 foi enunciada por Ana Paula Valadão, líder do grupo gospel Diante do Trono, como a “prefeita dos sonhos de deus”. Isso depois de Micarla bancar a gravação de um dos dvd’s do grupo na cidade de Natal. O vídeo completo foi retirado. Mas, ali, ouvia-se Ana Paula afirmar que as perseguições à Micarla eram “obras dos espíritos ruins”.

Eis aí o problema de Xuxa, sua indignidade: ela não aceitou Jesus, ela não pagou o dizimo. Se tivesse pago, nunca teria feito filme pornográfico. Estaria limpa. Anos atrás a jornalista Eliane Brum nos presenteou com um excelente texto que pode ser visto aqui (http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/11/dura-vida-dos-ateus-em-um-brasil-cada-vez-mais-evangelico.html). Como é difícil viver num país cada vez mais evangélico.

Antes de encerrar esse texto, gostaria de voltar no tempo. À 2012, precisamente. A autora Glória Perez sofria uma campanha de difamação por parte de evangélicos porque, segundo eles, sua novela, ‘Salve Jorge”, era uma apologia ao orixá Ogum. A Rede Record fez uma reportagem, repetindo-a por uma semana, sobre as apologias de Rede Globo ao candomblé, afirmando que “salve” era uma saudação ao orixá. E se fosse?  Mas a autora soube responder à altura.

No capítulo final, conversam as personagens Livia Marine e Wanda. Estavam no presídio depois de terem passado toda a trama traficando mulheres. Wanda, de forma dissimulada, recebe uma biblía e convida Livia para ir a um culto. “Culto?”, pergunta Livia, assustada, como quem diz: você, uma traficante de mulheres? Você que só fez o mal? Wanda responde: “sim, eu aceitei jesus!”. Isso apaga tudo!!! Isso me tira da obrigação de pagar pelo meu crime, Como ela, muitos, milhões… A resposta de Livia: “Wanda, realmente, você é como um inseto, que se adapta a qualquer ambiente, a qualquer coisa”.

Como Maquiavel, importa “parecer ser”, como fizera Micarla. Xuxa não se importou com isso. Que bom. Que venham outras xuxas. O laicismo agradece.