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A má-fé das instituições e o Candomblé

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Intolerância religiosa e etnocentrismo da justiça

A formação histórica da sociedade brasileira e dos seus poderes constituídos está intimamente ligada à religião, isto é, ao tratamento desigual e discriminatório que por aqui se estabeleceu em relação às diferentes manifestações de fé. Enquanto o catolicismo ostentou o status de religião oficial até o advento da República em 1889, gozando de todos os privilégios da convivência promiscua com os poderes e os poderosos terrenos, outras confissões religiosas tiveram de enfrentar a severa perseguição e criminalização por parte das forças eclesiásticas e policiais. Este foi e continua a ser o caso das religiões de matriz africana no Brasil. Durante décadas ao longo do século XIX e início do XX, todo aquele que praticasse outra confissão religiosa para além do catolicismo era obrigado a se fingir e se declarar católico. Os negros e demais recriadores das religiões africanas no Brasil sofreram severamente com isso. Não por acaso que, desde o início, de modo sincrético, eles valeram-se de ritos e sacramentos da Igreja Católica.

 Se, por um lado, não temos mais uma religião oficial que se confunda com o Estado, por outro, seria um equívoco afirmar que os princípios de laicidade, tolerância e liberdade religiosa estão devidamente consolidados entre nós. O padrão discriminatório, de violência e de intolerância seletiva em matéria religiosa por parte dos poderes e da sociedade em geral persiste de uma maneira muito evidente, como deixa transparecer a sentença emitida pelo Juiz Federal Eugenio Rosa de Araújo na qual pode-se ler que o nem o Candomblé nem a Umbanda constituem religiões de fato, pois ditas manifestações “não contêm os traços necessários de uma religião”, a saber, conforme o notório saber sócio-antropológico e teológico do magistrado: uma escritura-base, tais como a Bíblia e o Corão, uma estrutura hierárquica definida e um único “Deus a ser venerado”. Com base nessa concepção estreita e etnocêntrica do fenômeno religioso, o juiz negou um pedido do Ministério Público Federal – acionado pela a Associação Nacional de Mídia Afro – que reclamava a retirada pelo Google de 15 videos ofensivos à Umbanda e ao Candomblé publicados, supostamente por grupos evangélicos, no site YouTube.

 Os vídeos são um festival grotesco de preconceitos e ignorância. Neles encontramos odiosas afirmações que tentam ligar nessasjus religiões velhos estigmas e estereótipos de associação com manifestações malignas e demoníacas, o uso de drogas, a prática de crimes e difusão de doenças como Aids, e, por último, de que “não se pode falar em bruxaria e magia negra sem falar em africano”. Foram conteúdos difamatórios e desclassificadores como esses que o Excelentíssimo senhor Juiz deu razão e legitimou como “manifestações de livre expressão de opinião”. Por causa de seus próprios pré-conceitos e pré-noções, os quais o impediram de enxergar as ofensas evidentes e a intolerância religiosa, o juiz não cometeu apenas um erro conceitual, mas uma injustiça e violação de normas constitucionais. Apesar do magistrado ter tentado nos brindar com todo o seu saber sociológico para definir os traços distintivos que caracterizam uma religião, ele, contudo, tropeçou numa lição básica: tomou as categorias e os critérios próprios de sua religião, ou ao menos de um tipo específico de religião, e generalizou sobre as demais manifestações, como se ditos critérios constituíssem o fenômeno religioso ou mesmo a religião em sua essência e verdade absoluta. Em outras palavras, caiu no mais rasteiro etnocentrismo.

 Ora, não é preciso nem discorrer a respeito: nem todas as religiões são escriturísticas, monoteístas ou possuem um corpo especialista burocrático e hierárquico de membros, de modo que fica difícil crer que alguém altamente escolarizado como um juiz nutra tamanho desconhecimento a esse propósito. Há farta literatura histórica, etnológica e, inclusive, em seus nexos com os aspectos jurídicos de uma sociedade, que documenta a heterogeneidade das formas de culto religioso. Portanto, a conclusão é óbvia; o que motivou a sentença não foi a ignorância do juiz, mas a má-fé institucional que atravessa os representantes das instituições em uma sociedade excludente e desigual como a brasileira.

 As religiões afro-brasileiras sempre sofreram com a violência e a perseguição das instituições, seja na forma oficial de proibição e repressão seja na forma de uma má-fé responsável pela postura cínica destas em relação aos direitos e garantias dessas manifestações religiosas. O Estado que deveria proteger os direitos à liberdade religiosa e à integridade do Candomblé e Umbanda acaba, com efeito, por ignorar as violações e agressões cometidas. A proibição e a perseguição policial de antes cedeu lugar à perseguição neopentescostal, ao forte e arraigado preconceito que mistura ignorância e racismo contra os negros e, por último, à indiferença institucional. Sobre os frequentes ataques vindos dos neopentescostais contra o Candomblé, a Umbanda, contra tudo que é visto como “macumba”, podemos dizer que ditos ataques e a estratégia de demonização são constitutivos da própria identidade das igrejas neopentescostais.

candombléAo contrário do que ocorre com os símbolos e rituais de outras religiões, o Candomblé, a Umbanda e outras variações de matriz afro não contam com a tolerância social para exporem os seus símbolos e rituais em locais públicos. Estes são alvos de constantes ataques, achincalhos e acusações de feitiçaria e de “coisa do diabo”. Terreiros e casas de culto são invadidos e proibidos extraoficialmente por lideranças criminosas e religiosas locais em bairros periféricos, dominados por igrejas neopentecostais. As escolas continuam resistentes à inclusão efetiva em seus currículos dos conteúdos de história e cultura afro-brasileira, fazendo com que preconceitos e estereótipos sobre os negros e suas manifestações culturais perdurem e permaneçam intactos em professores e alunos. Nesse sentido, pesa sobre as religiões afro-brasileiras um contexto imensamente desfavorável para sua manifestação, continuidade e expansão, pois, desse modo, seus adeptos acabam por temer e evitar a exposição pública de suas crenças e o trabalho de tentar angariar novos membros, o contrário do que ocorre com outras religiões que chegam, inclusive, a serem exageradamente invasivas e insistentes. Parte significativa das pessoas podem até admitir e conceber as religiões afro-brasileiras como religiões, mas a grande maioria as enxergam como “religiões inimigas” ou “malignas”.

 Portanto, os adeptos das religiões afro-brasileiras enfrentam graves obstáculos para se colocarem como tais na esfera pública, isto é, de exercerem sua liberdade de crença. Mais ainda: são lesados na sua cidadania na medida em que a afirmação de sua identidade religiosa e étnica, assim como a correspondente relevância dela para os debates e rumos do sociedade, não é respeitada e assegurada. As agressões, os preconceitos e a legitimação social desses preconceitos continuam a manter as manifestações religiosas afro-brasileiras como religiões subterrâneas, escondidas do olhar da sociedade. A sentença judicial é um sintoma do quão frágil é o respeito à diversidade religiosa no Brasil ao mesmo tempo em que constitui mais um reforço institucional ao impedimento histórico da cidadania e da fala dos membros dos cultos afros em nosso país. Ela constitui, com efeito, um exemplo do papel histórico cumprido pelas instituições em invisibilizar, desclassificar e silenciar as religiões afro-brasileiras e seus adeptos.

 A despeito de todo o hipócrita discurso oficial acerca da diversidade cultural brasileira, o que podemos observar de fato é que, da escola ao judiciário, vigora historicamente o persistente esforço de rebaixamento e negação da identidade religiosa e cultural das manifestações culturais afro-brasileiras em geral e dos negros em particular. É esta má-fé institucional que permite com que compreensões como as explicitadas na sentença do juiz federal sejam possíveis. O cinismo e a violência simbólica arraigada nos poderes tornam possível a transformação mágica de desrespeito e ofensas em “manifestações de livre opinião”, de sorte que a exibição franca e estímulo gratuito e explícito da intolerância religiosa não constituem “vedação à continuidade da existência de reuniões de macumba, umbanda e candomblé ou quimbanda” ou “risco à prática cultural profundamente enraizada na cultura coletiva brasileira”.

Leia a sentença na íntegra aqui.