Por Lênio Luiz Streck (Procurador de Justiça – RS)
Publicado no site Conjur
As redes sociais pululam. Thays, 18 anos, estudante do segundo período de direito em Rondônia, passou no exame da OAB. Poderia, pois, ser advogada sem ter concluído o curso. Ela não trabalha como estagiária, não tem família “jurídica”. O mais próximo que ela está do direito é uma tia que trabalha na Justiça e um primo causídico. Não estudou processo, não estudou filosofia, não estudou processo civil, processo penal, direito penal… Mas passou.
Ela estudou para a prova durante três meses, segundo disse na entrevista (ler aqui). Sua “metodologia”: leu as questões das provas anteriores, leu o Estatuto da OAB e o Código de Ética, porque “sabia que para acertar todas as questões de Deontologia Jurídica era essencial”. Diz mais: “A primeira fase se resumiu em fazer vários exercícios, mesmo aprendendo sobre aquele conteúdo com o gabarito das questões. Já para a 2ª fase estudei um livro de Constitucional para concursos pois a linguagem era mais direta e rápida, tendo que adotar tal doutrina por ter pouco tempo para muito conteúdo. Li também um livro com as peças prático-profissionais resolvidas, já que eu não conhecia e nem sabia como era uma peça. A partir daí passei a resolver todas as provas em casa para não errar no dia.”
Bom, as matérias que ela teve contato na faculdade foram Deontologia Jurídica, Direito Constitucional e Direitos Humanos. O restante, ela “aprendeu” lendo os manuais representados pela literatura que se usa por aí. Na segunda fase ela escolheu Constitucional. Pronto. Passou. Tirou 4,4 de 5,0. O segredo dela, segundo suas palavras: “usou material de ótima qualidade”.
Fim do ato. Fecham-se as cortinas. Vou para o meu bunker.
Os concursos e os quiz shows
Tenho denunciado o fracasso do modelo de concursos públicos e prova da OAB de há muito. Ao mesmo tempo em que Thays passa depois de ter cursado apenas uma pequena parte do curso de direito, mais de 50% chumbam nesse exame. Os concursos públicos aferem apenas informações. Decorebas. Thays — e não quero tirar o mérito dela (meus sinceros parabéns para ela) — é o exemplo de que basta treinar. Não é necessário estudar no sentido de refletir. É necessário tão-somente fazer um bom adestramento.
Vamos todos para Estocolmo. O Nobel é nosso. Comunidade jurídica de terrae brasilis: por favor, vamos levar o direito a sério. Imaginemos na medicina um aluno de segundo período passar no “Exame de Ordem” deles (falo nas circunstâncias do caso retratado — não é impossível que algum Einstein passe; o que impressiona é o depoimento de Thays; ela foi aprovada sem ter cursado disciplinas, sem ter contato qualquer com a matéria, a não ser por via derivadíssima!). Quem se trataria com médicos brasileiros? Teríamos que fugir para outro lugar. E quem quer ser “tratado” pelos nossos “juristas”?
Bom, basta ver a qualidade dos livros didáticos e parte considerável da “doutrina” utilizada nas decisões e pareceres por aí. Invenção de princípios, ponderações que não passam de invencionices, reproduções de autores dos quais foram lidos resumos no Google… Nem mesmo a dogmática jurídica é levada a sério. Aliás, que dogmática jurídica temos, se, com apenas um semestre (ou dois) de Constitucional, a candidata já gabaritou o Exame da OAB? Hein?
E vejamos as salas de aula, as bancadas dos Fóruns e das meses do Tribunais. Direitos resumidos (e resumidinhos), simplinhos, mastigados (e mastigadinhos), direito Prêt-à-Porter (que não é doutrina francesa — vá que algum néscio pense que seja)… Insisto: parte (atenção, para não dar briga, eu disse parte) do material didático utilizado nas salas de aula e nos cursinhos de preparação deveria ter uma tarja com a advertência “o uso constante desse material fará mal a sua saúde epistêmica”. Na quarta capa, a foto de um “candidato” com cara “esquisita” (para ser eufemista) e a inscrição “usei e fiquei assim!”. Vejam a capa e a contracapa dos “livros mais utilizados”, vistos alegoricamente.
Terrabrasiliensis de todos os matizes e lugares: levamos “tão a sério” o Direito que basta estar cursando duas ou três disciplinas para “passar” pelo filtro profissional… O que fizemos com o Direito? É ele uma racionalidade tão meramente instrumental que é possível apreendê-lo mediante decorebas e formulinhas escritas em dois ou três “mastigadinhos”, resumos e resuminhos?
Este é o “estado da arte”. A grande “sacada” dos concursos nos últimos tempos foi a LINDB, uma “leizinha” de quinta categoria que serve só para a elaboração de questões em provas e outros quetais. E quando veio a Resolução 75 exigindo “Humanismo” nas provas, surgiu darwinianamente uma literatura de terceira divisão para demonstrar que efetivamente não é possível levar alguma a sério neste país. Basta ver o que os livros sobre humanismo fizeram com Rawls, Aristóteles, positivismo, hermenêutica, Kant, etc. Neste ConJur já escrevi várias colunas sobre isso.
De nada adianta: vamos estocar comida!
Thays é um marco simbólico. Thays denunciou o sistema. Viva a Thays (e falo seriamente isso). Sem querer, ela demonstrou a nudez do rei e da realeza terrabrasiliana. Fundamentalmente denunciou o fracasso de um “modelo” ou de um “sistema”. Mas, pergunto: Será que isso servirá para alguma coisa? Servirá de advertência? Ou a notícia será escondida por outra notícia e pelo próximo escândalo no ensino jurídico e nos concursos?
A banalização faz com que tenhamos perdido a nossa capacidade crítica. Talvez devêssemos inventar um aparelho para colocar nas redes sociais, que apitasse de semana em semana, chamando a atenção para a notícia que vai desaparecendo, coberta por outras camadas de notícias. Poderíamos chamar a esse aparelho de “micômetro”, isto é, um mecanismo para denunciar o “mico” pago na(s) semana(s) anteriores. Talvez com isso não esquecêssemos a decisão do juiz que julgou deserto o recurso cujo prazo caiu em um domingo, a decisão que indeferiu a inicial por ter páginas “demais”, a tentativa de grampos “alrededor” do Palácio do Planalto, o professor que acabou com Aristóteles e com Gadamér (sic), o livro que “ensina” que quando a CF fala em armas da República, não está se referindo às armas de fogo… Talvez por isso ninguém se impressione quando um desembargador decide uma causa usando o Google Maps na hora da decisão, para dizer que o juiz se equivocou na prova… Ou quando doutrinadores confundem “citações de autores de filosofia” com o uso de paradigmas filosóficos… Ou quando a “grande sacada” é dizer que “o juiz boca da lei morreu”…e que agora a saída é a ponderação. Ou que “tudo é relativo”… O alarme poderia funcionar, pois não?
Afinal, por que os leitores acham que essas coisas acontecem no cotidiano das práticas judiciárias (e da doutrina que não mais doutrina)? Por quê? Porque Thays pode passar na prova de Ordem sem ter estudado direito o Direito. Porque para passar na prova de juiz federal ou Ministério Público Federal tem que decorar a legislação e responder pegadinhas sobre dispositivos da Constituição ou responder questões sobre extradição que só o examinador conhece. Ou responder a questões sobre Caio e Tício ou sobre a ladra Jane…
Formou-se uma imensa indústria em torno do “Direito” que parece estar sucateada, em crise, como a indústria de automóveis. As “montadoras” do direito estão em crise. E as ruas estão cheinhas de automóveis. Mas o governo agora vai financiar em 60 meses. Claro. Vai melhorar. Se me entendem a analogia, é claro!
Vale a pena “descascar os fenômenos”?
Nestes tempos de pós-modernidade, de fragilização de sentidos, de “grau zero de significação”, de instantaneidades, de “memes” e bizarrias, fico pensando, parafraseando Caetano: quem lê tanta notícia? E quem se importa com isso tudo? Na sociedade do espetáculo, vivemos a ascensão da insignificância, do mínimo, dos 140 caracteres. Não há mais segredos. E quando se tenta fazer desleituras (a la Harold Bloom), retirando as camadas de sentidos coagulados do senso comum teórico, no mesmo dia ou no dia seguinte novas camadas se superpõem, escondendo aquilo que foi desvelado. Vale a pena agir como Sísifo e rolar a pedra até o alto e ser jogado inexoravelmente para o início do tormento? Cartas para a Coluna.
Algum néscio aparece(rá) e dirá: lá vem esse chato criticando de novo os concursos, o ensino, a dogmática, as decisões, etc (e blá, blá, blá). Pois é. Talvez a nescio-cracia vença esse Armagedom epistêmico. Talvez já tenha vencido. Nós é que não nos damos conta. Burros que somos. Como dizia Eraclio Zepeda, ás águas da enchente desceram e cobriram a tudo e a todos… Nós é que não nos apercebemos que de há muito começara a chover no alto da serra!
As coisas por aqui em terrae brasilis são difíceis. Temos que matar dois leões por dia. E não fazer atalhos ao estilo Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato, com o qual demonstrava o atraso nacional (sua filosofia era de que era melhor sentar em um banquinho de três pernas; para que quatro, se com três equilibrava melhor?) e por que plantar se as formigas comerão tudo… Somos incríveis: assinamos sete cartas de intenção com o FMI na década de 80 (a década perdida). Segundo um dos negociadores, cuja revelação foi feita para Elio Gaspari, “assinamos a primeira por engano, a segunda por distração. A terceira porque somos mentirosos, mas você não acha que, a partir daí, ou mesmo antes, estava tudo combinado?” Então: não parece que, nessa algaravia de concursos, ensino, literatura meia-boca, não ocorreram enganos, distrações e mentiras? Ou tudo isso já está combinado? Ou seja: tudo o que está ai não seria algo do tipo “ao não funcionar…funciona?”
Talvez a disfuncionalidade seja a própria funcionalidade.