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Por que nem sempre a maioria está certa

Em determinado trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador-personagem se depara em meio a uma de suas caminhadas reflexivas com um preto que, com entusiasmo, chicoteava outro em praça pública. Atônito, percebeu que o chicoteador, hoje alforriado, era Prudêncio, que foi um dia propriedade de sua família. Após interceder em favor do chicoteado e fazer cessar as chibatadas, Cubas faz a seguinte reflexão:

“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-le um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagriolhado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera”.

As origens aristocráticas de Brás Cubas, destacado personagem do panteão de personalidades nascidas da genialidade de Machado de Assis, não o impediram de refletir que dentro daquele algoz havia também uma vítima, razão pela qual transmitia, com rigor, a humilhação e os suplícios que um dia tão intensamente sofrera.

A perspectiva machadiana das origens da agressividade e da violência naquela situação específica pode se aplicar a uma miríade de situações correlatas. A deliberada ignorância acerca das origens da violência urbana, por exemplo – em especial a protagonizada por crianças e jovens -, e o superdimensionamento da repressão enquanto única maneira de lidar com o problema é um dos mais emblemáticos pontos de um senso comum insuflado pelo medo e pela ignorância.

Não interessa, então, se o Estado exclui pela primeira vez ao negar a dignidade por meio de serviços básicos essenciais a um verdadeiro exército de subalternizados e, sorrindo, exclui novamente, agora por meio da repressão policial legitimada pelo medo enquanto mecanismo indutor e legitimador de práticas autoritárias.

A violência urbana não é um problema moral, conforme tenta imputar a hegemonia liberal e conservadora, ávida por sangue, execuções sumárias e convicta de que matar e encarcerar são as soluções. Desvelado o discurso do recrudescimento do Estado Penal, o que se traz é a tese de que negros e pobres – maioria absoluta de nossa população em regime de privação de liberdade – tem uma propensão natural, quase genética, à criminalidade, dando guarida a um discurso racista, classista e segregador que cada vez mais se institucionaliza.

O flerte com o obscurantismo não se limita apenas às loas cantadas para as ultrapassadas teorias lombrosianas de que as origens do crime vem de perfis étnicos e biológicos. O axioma “bandido bom é bandido” morto tem recorte não apenas de cor, mas também de classe. O sonegador bilionário e o megaempresário corruptor, nas vezes em que seus “desvios” vem à tona, merecem a cadeia. O sujeito que furta celulares, por sua vez, é um potencial alvo da justiça popular sumária e da morte por linchamento, amparadas, sempre, no discurso do medo, da insegurança e da suposta impunidade.

O mais interessante é que uma maioria avassaladora da sociedade encampa o discurso repressor, em especial o da redução da maioridade penal, ainda que, contraditoriamente, guarde a compreensão de que a educação e a prestação efetiva dos demais serviços básicos e fundamentais sejam pontos fundamentais para a construção de um país mais justo e solidário; irracionalmente, assim, defendem com voracidade a intensificação da repressão, ao passo que se queixam das falhas do Estado em arcar com suas responsabilidades preventivas, fazendo uma confusão entre o que é causa e o que é efeito.

A contradição entre a vontade geral – a incontestável necessidade de melhoria na saúde, educação, moradia, lazer e da rede de proteção social como um todo – e a vontade de todos – a hipertrofia do Estado policial e da repressão – já foi apontada por Rousseau em seu “O Contrato Social”, onde reflete que “há às vezes diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta atende só ao interesse comum, enquanto a outra olha o interesse privado, e não é senão a soma de vontades particulares”.

Na campanha presidencial da França em 1980, o candidato François Mitterrand peitou o rolo compressor da vontade de todos ao inserir em sua agenda propositiva a abolição da pena de morte. Venceu as eleições e, no ano subsequente, aboliu a pena capital em seu país. Que sirva de exemplo para o Brasil de 2014, onde candidatos já flertam com o potencial eleitoral da demagógica redução da maioridade penal.