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Crônicas Sobre Justiçamento Coletivo e a Perda da Harmonia Social

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Por Ivenio Hermes

Em pleno século 21, quando 1º de fevereiro de 2014 um homem foi espancado por populares e morreu após dar entrada no Hospital Regional Tarcísio Maia em Mossoró, foi o primeiro caso de justiçamento coletivo com morte relatado no Rio Grande do Norte em 2014, mas a violência das ruas não parou por aí.

2014.4.28 CVLI - VARIACAO POR INSTRUMENTO E REGIÕES Num Estado que chega ao índice de 565 cvli em menos de 120 dias, não é de estranhar que novas formas de cometimento de crimes surjam, inovando os métodos, motivos e instrumentos. Já foram contabilizadas 2 mortes por queimadura, 2 por pedradas, 1 estrangulamento, 4 sufocamentos diversos, 11 ações contundentes dentre os assassinatos realizados no Rio Grande do Norte, e desse número foram excluídas as mortes mais comuns por arma de fogo, arma branca e associações de instrumentos.

Alguns dias depois da primeira morte por linchamento (justiçamento coletivo), precisamente em 11 de fevereiro, outro homem foi detido, desta vez em Parnamirim, por alguns vigias de uma empresa de segurança particular. Segundo eles e outros populares, o suspeito fora reconhecido por estar usando uma camisa azul assim como a pessoa que tentara, instantes antes, quebrar a janela de uma residência para furtar objetos do imóvel. A fragilidade desse reconhecimento e a surdez aos argumentos de defesa, pois o julgamento é bárbaro e evidentemente não abre espaço aos princípios jurídicos da ampla defesa e do contraditório, levou o suspeito à beira da morte.

Evandro, que foi como o suspeito conseguiu se identificar, somente não morreu no local porque os próprios seguranças evitaram o pior e o levaram para o Hospital Regional Deoclécio Marques. No dia seguinte, policiais militares concluíram que se tratava de um inocente, que tivera apenas o infortúnio de utilizar uma camisa da mesma cor da que o pretenso assaltante usara.

Essa preconceituosa e emocional ação contra o crime, também conhecida “justiça total”, muitas vezes incentivada por alguns e justificada por outros como um comportamento natural decorrente do descumprimento do Estado em sua parte no pacto feito com o cidadão, ou seja, de prover equilíbrio e harmonia nas relações sociais por meio da aplicação das leis. Ao se afastar dessa sua atribuição, o Estado abre mão de fazer a justiça da forma correta e devolve ao cidadão o problema, permitindo que este se afaste da convivência civilizada e civilizatória.

E outros casos vem se juntando à habituação com violência. Da mesma forma como pessoas inocentes (e todos o são até que se prove o contrário, mediante um juízo legalmente constituído) são julgadas e condenadas diuturnamente nas ruas, vielas, estradas carroçáveis e outros espaços urbanos e rurais, morrendo de forma indefensável, vítimas de diversos instrumentos que caracterizam uma justiça sumária.

O espancamento por populares revoltados tem sido desculpa para uma pretensa e falsa “limpeza social” que mata mendigos, indigentes, periféricos, sem teto, queimando alguns até à morte e assassinando outros com o “trogloditismo” de pedradas na cabeça e outras formas cruéis.

Dos doze espancamentos ocorridos até a data de hoje, o que ocorreu no dia 27 de abril de 2014 no Bairro Nordeste em Natal, foi o 8º com características de justiçamento coletivo, e como a maioria dos outros casos, os culpados nunca serão identificados porque são párias esquecidos pelo Estado, suas vidas parecem sem importância ou suas mortes são chanceladas pelo rótulo do “envolvimento com atividade ilícita” que dão ao Governo mais motivos para não investir em uma segurança pública de qualidade, numa gestão integrada e estratégica, que realmente assegure bons resultados com metas a serem cumpridas em períodos estabelecidos.

Concomitantemente, as pessoas que praticam qualquer tipo de justiça letal, seja ela coletiva ou individualmente, precisam ser detidas e punidas para evitar que o endemismo dessa ação se efetive.

Os casos aqui mencionados são crônicas sobre justiçamento coletivo e a consequente perda da harmonia social, oriundos do mesmo prisma desencadeador da violência e do retorno à barbárie num Estado onde as leis perdem paulatinamente sua serventia como delimitadoras (e norteadoras) dos direitos e deveres. Onde a ação policial e o operador de segurança não recebem investimento e perdem sua presença cotidiana, de tal forma que com ela não se pode mais contar, contudo, é necessário que haja efetivo e serviço policial que responda às demandas da segurança pública para que essa prática cesse e evite que nossa sociedade retorne ao estado de barbárie e ao primitivismo das relações sociais.

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SOBRE O AUTOR:

Ivenio Hermes é escritor Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública e Ganhador de prêmio literário Tancredo Neves, ativista de direitos humanos e sociais e pesquisador nas áreas de Criminologia, Direitos Humanos, Direito e Ensino Policial.

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DIREITOS AUTORAIS E REGRAS PARA REFERÊNCIAS:

É autorizada a reprodução do texto e das informações em todo ou em parte desde que respeitado o devido crédito ao(s) autor(es).

HERMES, Ivenio. Crônicas Sobre Justiçamento Coletivo e a Perda da Harmonia Social. Disponível em: < http://j.mp/1hPUJjZ >. Publicado em: 29 abr. 2014.