Por Tiago Giacomoni
Publicado em http://tiagogiacomoni.blogspot.com.br/2014/04/e-pau-e-pedra-e-o-fim-do-caminho-e-um.html
Quando fiz vestibular pela primeira vez, lembro que tinha uma questão sobre a música “Águas de Março”, de Tom Jobim. Considerando que fiz vestibular há alguns bons anos, podemos dizer que citar músicas em uma prova, independentemente da disciplina ou grau, já não é novidade. Mas até aí, tudo bem.
Outro dia, foi noticiado que a Universidade de Skidmore, em Nova Iorque, lançou um curso Intitulado “A Sociologia de Miley Cyrus: Raça, Classe, Género e Meios de Comunicação Social”. As aulas seriam focadas na análise comportamental da artista e em sua “mudança repentina”. Mas até aí também está tudo bem.
Há algum tempo surgiu, nas redes sociais, uma passagem de Schopenhauer com uma ideia semelhante ao que diz a letra de “Beijinho no Ombro”. Schopenhauer, filósofo alemão, cuja filosofia influenciou Eduard von Hartmann e Friedrich Nietzsche.
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“Desejo à todas inimigas vida longa, pra que elas vejam a cada dia mais nossa vitória!”
Mas aí pode, já que é Schopenhauer. Ou melhor, já que não era brasileiro. Que não era mulher. Que não mostrava o corpo. Que não cantava funk. Que não cantava sobre sua sexualidade.
E então, eis que o professor de uma escola coloca uma questão em uma prova e o povo quase #vaiprarua de novo. Recomendo a leitura da reportagem:
A novidade foi citar uma música de um estilo musical fortemente criticado, por ser considerado de baixo nível (pra não dizer de pobre, de favelado), com uma letra que traz bordões que estão “na moda” e interpretada por uma mulher que nem de longe é considerada como modelo de conduta. Ou seja, a faixa que a elite-patrulha intelectual jamais escutaria.
(Aqui não entro no mérito de sua qualidade enquanto artista, visto que o intuito com o lançamento da música em questão nem era esse. A ideia era simplesmente ser engraçada e retratar perfeitamente o comportamento das pessoas, principalmente nas redes sociais – o que de fato aconteceu e por isso faz sucesso).
Não sou educador, mas trabalho com a área há alguns anos. Educar é tarefa absurdamente desafiadora e exige criatividade. Desculpem os que discordam, mas eu acho que é preciso sim contextualizar todo o conteúdo que for possível com situações/ícones/referências contemporâneas. Valesca é um ícone popular, é uma figura carismática das novas gerações. Fomentar discussões desse tipo para quebrar paradigmas e romper preconceitos é enriquecer o ensino. E se essa foi a real intensão do professor, então acredito que precisamos de mais professores assim. Quanto ao título de “pensadora”, o ponto está muito claro na declaração do professor na reportagem: qualquer pessoa que forme um conceito, pode ser considerado um pensador. (E ainda vale lembrar a quantidade de antas que temos com esse mesmo título e fazem muito menos sentido do que a pior das músicas de Valesca).
Mas o fato é que a reação indignada certamente não é sobre isso. É novamente pela ideia preconceituosa de que a mulher que trabalha com o corpo é burra e desqualificada, portanto não tem que ser citada em sala de aula. É a ideia de que o funk é coisa de pobre, de quem mora no morro, de gente sem cultura, já que pessoas que estudam e são cultas não gostam de funk. É a velha “elite-patrulha intelectual” que está acima de tudo e todos e por isso pode falar o que presta e o que não presta. O que é música ou não. Quem é artista e quem não é. É o conhecido trio que sempre se disfarça de “bom-senso”, o qual está nas opções abaixo. Marque a opção correta:
A) Tiro, porrada e bomba;
B) É pau, é pedra, é o fim do caminho;
C) Misoginia, machismo e preconceito.
E não, não é isso que inverte valores e corrompe a sociedade. Esse é o papel da nossa hipocrisia ao ignorar realidades diferentes da nossa julgando tudo o que não concordamos como errado e inapropriado.