A sociologia padece de uma triste sina no Brasil. Sua história no ensino básico brasileiro é marcada por uma trajetória oscilante de interrupções e retornos, ameaças e promessas. Como disciplina escolar, a sociologia nunca gozou de plena estabilidade nos currículos das escolas brasileiras. A luta por implantá-la nas salas de aula data do período do Império. Em 1881, o famoso positivista Benjamin Constant elaborou um projeto de estruturação do ensino que previa a sua inclusão, contudo, o projeto não logrou êxito nesse quesito, sendo a sociologia retirada da proposta em 1901. “A ciência da sociedade” só retorna então às salas de aula da educação básica no começo da década 1930 através da Reforma Rocha Vaz e da Reforma Francisco Campos. Porém, em 1942, a Reforma Capanema retira a obrigatoriedade do ensino da sociologia no secundário até ela ser banida definitivamente das escolas durante o período da Ditadura Militar, e, em 1971, substituída pelas disciplinas de “Organização Social e Política Brasileira” e “Educação Moral e Cívica”.
Somente a partir da década de 1990 é que a sociologia retoma, timidamente, em alguns estados e escolas como disciplina facultativa ou através de conteúdos específicos trabalhados interdisciplinarmente. Em 2008, com a Lei nº 11.684/08, finalmente a disciplina de sociologia, assim como a de filosofia, é incorporada ao Ensino Médio como matéria de ensino obrigatório nos primeiros, segundos e terceiros anos do Ensino Médio. Uma longa e dura batalha, mas que, de modo algum, significa uma conquista definitiva.
Eis que, mais uma vez, a permanência da sociologia é colocada sob ameaça. Trata-se do projeto de lei (PL nº 6.0002/2013) do deputado federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF) que propõe a retirada das disciplinas de sociologia e filosofia do currículo do Ensino Médio. Felizmente, a relatoria da Comissão de Educação reprovou por completo o projeto e o mesmo foi arquivado. Após as críticas e reprovação do projeto, o deputado defendeu-se argumentando que a sua intenção, nesse ponto em particular, era questionar a carga horária destinada a essas matérias e propor a diluição de seus conteúdos em outras disciplinas.
A despeito da Comissão da Educação ter rejeitado o dito projeto, é preciso manifestar repúdio a essa iniciativa recorrente na história da educação básica brasileira e, como convém aos que se dedicam ao ofício de sociólogo, interrogar acerca das razões e motivações que orientam este constante estado de sitiamento e ameaça que parece pesar irremediavelmente sobre a presença e continuidade da sociologia – e da filosofia – na educação básica, pois, certamente, esta não será a última investida.
Há pelo menos duas maneiras de abordar esse constante estado de suspeita sobre a obrigatoriedade da sociologia nas salas de aula. Primeiro, através dos incômodos políticos que a perspectiva sociológica pode ocasionar para determinados grupos de interesse e ideológicos. Segundo, em função da pouca legitimidade social e científica alcançada pela sociologia. Irei abordar esse segundo aspecto, pois ele proporciona examinar alguns elementos históricos e criticar o modo pelo qual os cientistas sociais, sobretudo os que estão nas universidades, relacionam-se com a sociologia no ensino médio e seus profissionais.
A não-consolidação do sentido e da legitimidade da sociologia na escola se deve ao menos a dois fatores inter-relacionados, quais sejam, o banimento da sociologia durante o período da ditadura militar e o pouco interesse dos cientistas sociais acadêmicos pela realidade escolar da disciplina.
A ditadura teve duras e nefastas consequências sobre a sociologia. Ela interrompeu a continuidade e o amadurecimento de uma reflexão cada vez mais científica e rigorosa sobre a formação da sociedade brasileira e seus dilemas, cujas primeiras obras de Florestan Fernandes constituem um exemplo pleno, e, em virtude disso, prejudicou enormemente o reconhecimento público que a sociologia começava a conquistar na esfera pública e na sociedade entre os anos 50 e 60. Mas não foi apenas essa interrupção que os militares e seus apoiadores causaram. Eles abortaram, também, o debate, que era cada vez mais intenso na época e que tinha figuras de peso como Florestan e Costa Pinto, sobre o ensino de sociologia nas escolas. Nesse debate, não se tratava simplesmente de uma questão corporativa, o ensino de sociologia era visto por esses e outros intelectuais e educadores como parte fundamental da reforma social e democratização de que o país necessitava para se modernizar. A sociologia entendida enquanto um conhecimento científico capaz de brindar às novas gerações com os instrumentos conceituais para lidar e intervir numa sociedade cada vez mais urbana, industrial e interdependente.
Desse modo, o resultado foi o isolamento da sociologia e dos sociólogos nos muros da universidade e a fragilização de seu papel público acerca dos dilemas e rumos do país, deteriorando aos poucos o capital e influência conquistada nas décadas anteriores. Esse quadro fez com que os cientistas sociais se entrincheirassem cada vez mais nas universidades e relegassem a intervenção no debate público e o intercâmbio com os profissionais que trabalham fora da academia a um segundo plano, especialmente com aqueles que trabalham com ensino nas escolas.
Portanto, temos, de um lado o enfraquecimento do engajamento dos cientistas sociais nas discussões públicas e, de outro, a indiferença dos acadêmicos pela sociologia na escola, vista como algo menor ou mesma sem importância. Essas características se mantêm ainda hoje, de sorte que a sociologia em geral acaba por padecer de um enorme déficit de reconhecimento e legitimidade social, tornando-se, por conseguinte, vulnerável às investidas contrárias, que a atacam, com efeito, no flanco mais frágil e ignorado pelos quadros universitários, a escola. Os recorrentes questionamentos de estudantes e leigos quanto a “utilidade” da sociologia são o sintoma mais visível e flagrante desse quadro. Parte significativa dos professores universitários continuam a ignorar os dramas e dificuldades enfrentados pelos seus ex-alunos no mercado de trabalho escolar, principalmente na iniciativa privada na qual estes tem de conviver e suportar precarizações, explorações e assédios morais de coordenadores e alunos. Não raro temos casos de professores de sociologia demitidos por razões religiosas e políticas, o que atinge diretamente a segurança, autonomia e confiança desses profissionais em seu ofício de ensinar sociologia, levando vários deles a desistir da área ou se conformar com a instabilidade, a rotina de violência institucional e as exigências absurdas para manter o emprego.
O enorme equívoco dos cientistas sociais universitários em sua indiferença pela realidade escolar da disciplina é que eles não percebem que a sociologia no ensino médio tem um papel vital para disseminar e difundir a sua própria disciplina na sociedade, preparando possíveis novos quadros e leitores. O que, consequentemente, pode contribuir significativamente para alavancar a relevância atribuída e o reconhecimento da sociologia junto à sociedade.
Para que de fato a sociologia como disciplina obrigatória no ensino médio possa desfrutar de segurança, permanência e reconhecimento é preciso, entre outras coisas, uma mudança na mentalidade e na postura dos cientistas sociais, sobretudo dos que estão nas universidades. Em outras palavras, maior engajamento público na vida política e cultural, produzindo críticas e incitando debates, e estreitamento dos laços com a escola por meio de pesquisas, debates, trocas de experiência, etc.. Sem isso, receio, a sociologia na escola continuará sendo sitiada. Portanto, as razões para o constante ataque desferido contra a presença da sociologia nos currículos escolares devem ser procuradas não apenas nas motivações ideológicas de setores conservadores mas, também, entre nós, isto é, nas atitudes e práticas que cultivamos em relação a nossa disciplina, em favor de sua defesa, difusão e reconhecimento. Ou seja, na apatia pela intervenção pública e na indiferença pela sociologia na escola média, as quais assolam boa parte dos cientistas sociais.