O povo só fala disso ultimamente: Rachel Sheherazade. Alguns amigos do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre me perguntaram como ela era aqui na Paraíba. Bom, não fedia, nem cheirava. Na verdade, eles estão muito preocupados com ela por ser a mesma uma figura polêmica, com opiniões claramente reacionárias, e que de forma explícita defende uma agenda de governo que promove o bem-estar da elite, mesmo que com isso sacrifique o bem-estar do povo.
De fato, não gosto de Rachel Sheherazade, mas já cheguei a gostar. Quando ela apresentava as matérias do Tambaú Notícias, aqui na Paraíba, tinha as boas características de um bom apresentador de jornal: boa dicção, imparcialidade, linguagem clara e neutralidade. Essas características são caras a um bom jornalista. Porém, há também uma clara responsabilidade do jornalista, que é a de lutar contra as injustiças da sociedade, denunciar quando um ato injusto acontece. Ela fazia tudo isso, ou pelo menos parecia, afinal, não havia muito do dedo dela em muito que eu assistia de seu jornalismo na TV. E eu nem ligava.
Porém, durante um carnaval, ela resolveu abrir a boca e falar do carnaval. Concordei com cinquenta por cento com o que ela disse. Discordei da outra metade. E só, tinha morrido aí minha reação. Achei até mesmo interessante que ela tivesse saído do salto e usado palavras tão fortes para falar do carnaval. Julguei apenas como alguém que precisava se resolver em casa e segui minha vida. Nada além disso.
Mas o SBT parece ter gostado de cem por cento, pois a contratou para apresentar o SBT Brasil, onde, toda metida a Bóris Casoy loira, preferiu falar asneiras atrás de asneiras, repetindo todo um discurso reacionário, conservador e elitista. Me assustei. Como alguém aparentemente apagado, de suposto brilho local, ao falar um julgamento padrão sobre o carnaval, cuja repercussão é tão, tão… tão local, conseguiu ganhar tamanho espaço na mídia nacional.
Prontamente, mais da metade dos meus amigos meio que deram tapinhas virtuais nas costas dela, desejando boa sorte. Lembro que até fiz algo parecido, mas era mais no tom de “Legal, alguém obteve sucesso”, e pronto, assunto morto. Trabalhar para essa emissora, ao meu ver, não é lá essas coisas. Nem TV eu assisto, então fiquei meio alheio a essa troca de farpas toda desde que ela assumiu seu lugar no SBT Brasil. Mas, venhamos e convenhamos, uma rede que coloca uma gasguita para vender óleo de cártamo, causando-me náuseas existenciais só de ouvi-la falando do produto, não tem meu crédito quanto aos jornalistas que contrata. Hoje, os mesmos contatos que deram-lhe tapinhas virtuais nas costas se horrorizam com as coisas que ela fala.
Ela está sendo elitista, e defendendo um discurso (e um modo de ação) da elite. E, de qualquer forma, há um problemão em ser elitista. Nem todos que estão na elite são diabos horrendos, obviamente. Alguns estão lá claramente por esforço, e de fato alguns, mesmo não tendo se esforçado tanto, sabem dar valor aos demais que não estão ali com eles. Porém, estes são exceção, e não a norma. A elite brasileira, via de regra, criam projetos de sucateamento de oportunidades contra todos os mais pobres e menos poderosos que eles. A elite brasileira nunca se preocupou com o que define o ser humano, e os direitos que todos temos simplesmente por sermos humanos.
Os direitos que eles alegam para si são somente os de propriedade – por sinal garantido pelo artigo XVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Artigo XVII
1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Mas a mesma elite que alega a si mesma esse direito, nega para todo o resto da população, todos os trinta artigos da mesma declaração. Ou seja, ela está preocupada em garantir seu poder, e não os direitos, e por isso começam a espalhar o “bom” e velho discurso de “direitos humanos para humanos direitos”.
Pois bem, não é assim que a banda toca. Direitos humanos dizem respeito a direitos que todos têm pelo simples fato de serem humanos. Isso significa que os trinta artigos valem para honestos, presidiários, traficantes, hermafroditas, policiais, negros, brancos, índios, crianças, lutadores de vale-tudo, idosos, adultos, empresários, empregados, vaqueiros, tatuados, mulheres, jornalistas, veganos, homens, cristãos, budistas, muçulmanos, ateus, acadêmicos, analfabetos e quaisquer outras pessoas que você possa apontar o dedo e dizer “este é um ser humano”. Isso quer dizer que os mesmos direitos humanos que deveriam ser garantidos para o assaltante negro de quinze anos amarrado a um poste vale também para Rachel Sheherazade, Sílvio Santos, Dilma Rousseff, pro mendigo do centro da cidade ou o soldado chamado para acompanhar um protesto. Todos, em todas as hipóteses, devem ter garantidos seus direitos, e deve haver ações punitivas para todo aquele que atentar contra o direito humano do outro.
Isso significa que uma pessoa pode ser punida sem, com isso, sofrer atentado aos seus direitos, e que muitas vezes é o desconhecimento dos próprios direitos que leva uma pessoa a cometer um crime. Talvez seja isso que um diretor médio de presídio não entenda. E pode ser isso que a Rachel não entendeu: o rapaz amarrado no poste pode e deve ter garantidos seus direitos tanto quanto ela, afinal, é tão humano quanto ela, e cometer um crime – que deve ser punido pelo estado, e não por milícias paramilitares – não o torna menos humano. Fosse assim, a jornalista cometeu uma série de delitos contra o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – só em proferir seu discurso, e ninguém a tornou menos humana por causa disso.
Vamos lembrar que, após umas palavras do Paulo Ghiraldelli Jr., ela se manifestou com as seguintes palavras:
“Sr. Ghiraldelli, liberdade de expressão termina onde começam calúnia, difamação, ameaça, incitação ao crime! Vai aprender isso num tribunal!”
Logo depois, ela veio com essa frase:
“Missão cumprida: esta manhã fui à delegacia competente representar penalmente contra meu agressor ou quem se faz passar por ele. Agora, é só aguardar as providências legais e a providência divina. Tenho a certeza de que cumpri meu papel de cidadã”.
Porém, ao mesmo tempo, desconhecendo os princípios que regem o Artigo V da Constituição Brasileira, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Estatuto da Criança e do Adolescente e um sem número de outras leis, a própria Rachel Sheherazade cometeu o disparate de caluniar um jovem amarrado ao poste, difamá-lo publicamente, justificar a ameaça à sua vida – dizendo que a reação foi até compreensível – e incitando claramente o crime ao defender os mesmos criminosos que atentaram contra a vida dele, reafirmando em segunda camada de seu discurso que as milícias – claramente criminosas – deviam sim fazer justiça com as próprias mãos. Em vez de a população atingida cobrar maior policiamento e melhores oportunidades para os jovens em situação de rua às autoridades, era para ela simplesmente reagir violentamente ao quase linchamento, demonstrando o poder desproporcional da reação. Esse jovem, mesmo errado, tem o direito de ir à delegacia e abrir um processo contra a jornalista só pelas palavras que ela falou a seu respeito.
Um grupo ir lá e descontar em alguém mais fraco as mazelas que são reflexo direto da má gestão de um país, todos têm o poder de descontar, mesmo não tendo o senso ético para isso. Isso é o bullying das escolas, mas em escala social. A jornalista simplesmente fez isso em seu discurso, fortaleceu o bullying social. Agora, ir às sedes dos governos, solicitar uma audiência pública com os governantes e cobrar deles melhor educação, chances de emprego e condições de vida estendidas à totalidade dos brasileiros, poucos grupos se habilitam.