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O simbolismo do Direito brasileiro: supercidadãos e subcidadãos

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Por Fernando Rocha

(Procurador da República e Professor de Direito)

Em obra de leitura obrigatória a todos estudantes e profissionais do Direito, o jurista  Marcelo Neves denuncia, com viés científico, o caráter predominantemente  simbólico do Direito Brasileiro. Parte da premissa de que  a realidade econômico-social tupiniquim constrói um ambiente no qual o Direito se submete, sem filtro regulamentar, na esteia do pensamento de Luhmann, à influência direta de fatores políticos e econômicos preponderantes.

direitoEvidente que o Direito, como ciência social,  deve ser concebido como amálgama dos  fatores reais de poder, consoante lição secular de Lassalle, e, portanto, é necessariamente formatado por um plexo de interesses econômicos, políticos e dos demais  sistemas sociais. O que distingue o Direito Brasileiro daquele que se opera nos países denominados centrais, a exemplo do que ocorre com os demais países reputados periféricos, é a forma como o sistema jurídico é influenciado pelos demais sistemas sociais, em especial, o econômico e o político. Em casos que tais, a influência desses sistemas sociais é direta e sobreposta, sem filtro procedimental, o que torna o direito um fantoche dos interesses econômicos e políticos preponderantes. Nessa realidade, a legislação, notadamente a Constitucional, se presta a servir de mero instrumento simbólico de discurso para que a elite atuante, sem concretizar  de forma generalizada sequer seus termos fundamentais, arrefeça  as tensões das massas.  Nesse ambiente de simbolismo legislativo, na balizar designação de Marcelo Neves, é que se propicia a edificação dos cidadãos superintegrados, os quais usufruem de todos os benefícios do sistema, sem se submeter à ordem constitucional, e os subintegrados a quem somente sobejam os deveres da ordem constitucional vigente.

A constitucionalização simbólica,  em suma, importa na discrepância dos direitos declarados no texto constitucional  com o que, de fato,  restou concretizado, assim estabelecido em razão do desinteresse consciente  e ocultado da elite em fazê-lo cumprir. A realidade constitucional brasileira é rica em legislação simbólica, submetida que está, de forma hipertrofiada, aos sistemas econômicos e sociais, favorece a marginalização dos subintegrados, ao passo que os superintegrados usufruem de forma privilegiada do direito.

Não é à toa que o Direito Penal brasileiro somente contribui para a punição dos menos favorecidos, eis que o sistema é concebido para tutelar os interesses dos superintegrados cuja influência submete o Direito aos seus predicados políticos e econômicos. Caso emblemático é o de Paulo Maluf que, condenado em outros países  por lavagem de dinheiro, que lhe rendeu, inclusive, a vergonhosa posição de procurado pela INTERPOL, no Brasil, exerce com deboche o mandato de Deputado Federal. Por muito menos, milhares de subintregrados lotam os presídios brasileiros.

A própria justiça é escancaradamente influenciada pelos fatores políticos e econômicos e não raramente observamos a leniência dos tribunais superiores com os mais influentes, em crimes gravíssimos, em descompasso evidente quando se trata dos hipossuficientes da vida real. Jurisprudências são alteradas, súmulas são emitidas sem amparo legal (v.g súmula n. 11, do STF), decisões são reformadas em tempo recorde, tudo para garantir aos superintegrados direitos inexistentes e não extensíveis aos marginalizados do sistema. Operações da polícia envolvendo homens influentes são facilmente anuladas sob a batuta de um garantismo penal inexistente, ao compararmos com a realidade dos subintegrados.   Recentemente, vemos o limbo entre a aplicação da lei de execução penal aos condenados do mensalão em contraste ao tratamento dispensado aos demais detentos do complexo penal da Papuda.

Observamos com torpor, Deputado condenado cumprindo regime fechado admitido,  por complacência judicial, a se manter no cargo, apesar da legislação determinar expressamente a perda do cargo e suspensão dos direitos políticos. O adágio ameaçador “você sabe com quem está falando?”, objeto de destemido artigo publicado nesse espaço, resume o efeito do simbolismo do direito brasileiro que deixa clara posição dos “supercidadãos” diante dos subintegrados.

Enquanto os gestores públicos propalam em troca de votos, em discursos eleitorais acalorados, o direito a todos à saúde e educação, intencionalmente, nada fazem em concreto para implementá-los. No mundo real, os marginalizados, diariamente, se submetem aos horrores dos hospitais públicos, ao passo que os que prometem protegê-los em palanques eleitorais usufruem, por conta do dinheiro público, a medicina de ponta no renomado Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.

Em momento de tensões sociais prementes como a que vivenciamos nas recentes ondas de protestos no país, as respostas do sistema político foram profundamente simbólicas, tenho a presidenta da República anunciado, inclusive, uma assembleia nacional constituinte a reboque da própria Constituição Federal, que ela simbolicamente se comprometeu zelar. No plano prático, absolutamente nada de relevante foi realizado, somente atividades simbólicas. O simbolismo é, sem dúvida, a marca do Direito Brasileiro. Até quando?