Em uma época marcada pelo advento de novas tecnologias de informação e comunicação, as relações éticas, políticas e socais modificam-se de modo cada vez mais acentuado. Mudanças nas formas de produção e distribuição da informação acarretam em mudanças na forma como uma sociedade enxerga a si própria e ao mundo. Trazendo, com isso, novos dilemas, novos desafios, e, sobretudo, novas responsabilidades. Toda uma constelação de constructos teóricos tem surgido nas últimas décadas para dar conta desses novos dilemas éticos, mas suas consequências práticas ainda são imprevisíveis.
Contudo, para lançar uma luz sobre esses novos dilemas, remeteremos ao pensamento do alemão Jürgen Habermas e sua tentativa de conceber uma razão comunicativa em oposição à razão instrumental, predominante na tradição filosófica ocidental até então. Seu objetivo com isso era conceber uma teoria que forneça um princípio moral baseado nas relações intersubjetivas entre os indivíduos, que se efetiva através do diálogo e da argumentação. Nesse contexto, nasce a Ética do Discurso fundada na década de 60 por Karl-Otto Apel e posteriormente retomada por Habermas.
A Ética do Discurso tem forte influência da teoria moral kantiana, porém, difere-se desta pela caracterização da razão dialógica ou comunicativa como fundamento de todo princípio ético e moral. Ou seja, enquanto para Kant cada sujeito, envolto em sua subjetividade, determinava para si aquilo que é ou não moral, para Habermas tais questões devem ser resolvidas não mais por um sujeito atomizado, individualista, mas sim, pelo consenso alcançado através do diálogo entre sujeitos capazes de linguagem e ação. Esta é a diferença fundamental entre a razão instrumental e a razão dialógica: uma é baseada no indivíduo, outra no coletivo.
Nesse contexto, cabe-nos refletir sobre o papel das mídias independentes para a construção de uma comunidade ideal de comunicação proposta por Habermas. Já que a Ética do Discurso tem por pretensão a construção de relações comunicativas, solidárias e participativas entre os membros de uma comunidade. Com isso, a linguagem torna-se o principal meio de integração social, e as mídias independentes, pelo seu caráter libertário e participativo, pela ausência de intermediadores políticos, econômicos e institucionais, desempenham um papel fundamental para a criação de consensos.
Chamo aqui de mídias independentes àquelas surgidas após o advento da internet, que permitiram potencialmente a qualquer individuo atingir a mesma capilaridade de grandes conglomerados de comunicação. Não apenas em textos, mas em imagens, permitindo a qualquer um com um celular conectado à internet transmitir em tempo real qualquer acontecimento para um grande público, sem que seja necessária uma estrutura ou um veículo de comunicação de massa. Permitindo ainda que esse público interaja com a transmissão, seja compartilhando, comentando, ou trazendo informações que possam mudar a própria forma ou perspectiva de como a transmissão é feita.
As mídias ditas hegemônicas encaram, geralmente, os indivíduos não como colaboradores, mas sim, como espectadores. Para os indivíduos de uma determinada comunidade cabe tão somente “espectar”, isto é: assistir, observar determinado conteúdo; cabendo-lhe tão somente a escolha entre receber as informações deste ou daquele veículo de informação, integrante de um “universo” composto por meia dúzia de grandes veículos. As informações, nesses veículos, não são compartilhadas ou debatidas por uma rede de pessoas, mas, destinadas a núcleos dispersos que não necessariamente interagem entre si.
Ora, para motivar e controlar sujeitos atomizados, a autoridade e os aparatos repressivos tornam-se poderes secundários, basta entretê-los, excita-los, amedronta-los, e ao mesmo tempo, bombardeá-los com informações irrelevantes ou intencionalmente direcionadas. Assumindo esse papel, os grandes veículos de informação, voluntariamente ou não, acabavam por fazer o papel antes desempenhado pelo Estado, a saber, homogeneizar e padronizar os discursos sem a fomentação do diálogo e do consenso entre os membros de uma mesma comunidade.
Por uma combinação de fatores, políticos, técnicos, eleitorais, econômicos ou ideológicos, as políticas públicas têm cada vez menos intenção em intervir na atuação dos grandes grupos midiáticos em nosso país. Nesse contexto, as mídia independentes surgem em oposição ao Estado e ao monopólio da comunicação, em defesa dos valores de livre expressão que permeiam atualmente os discursos – ao menos em teoria – das mais diferentes matizes ideológicas, tanto à esquerda, quando à direta.
A internet forneceu as condições necessárias para a criação de meios alternativos de informação, capazes de rivalizar com os grandes veículos de comunicação de massa. Permitindo que questões até então silenciadas pelos grandes veículos viessem à tona. Oferecendo o espaço ideal para que essas questões fossem articuladas e debatidas em uma escala sem precedentes. Aproximando-se, em certa medida, da construção do que Habermas chamou de comunidade ideal de fala.
Para Habermas, toda ação é coordenada pela linguagem, a própria racionalidade se efetiva através da linguagem. Sendo assim, o único meio das pessoas alcançarem um mútuo entendimento é através da intermediação da linguagem. Não uma linguagem que dialoga introspectivamente com si mesma através de um diálogo interno do indivíduo, mas sim, um diálogo intersubjetivo e aberto entre membros de uma mesma comunidade linguística.
Sendo assim, todas as questões inerentes à vida humana devem ser resolvidas através do diálogo e da argumentação, todas as decisões devem ser tomadas através do consenso. Toda busca pela verdade deve ser empreendida coletivamente, sem nenhum meio coercitivo, seja ele estatal, corporativo, ideológico, religioso, histórico ou cultural. Portanto, para se chegar a um consenso, para se empreender uma práxis argumentativa devem-se observar esses critérios. Ou, como nos diz Habermas em Direito e Democracia: “Todo aquele que se envolve numa prática de argumentação tem que pressupor pragmaticamente que, em princípio, todos os possíveis afetados poderiam participar, na condição de livres e iguais, de uma busca cooperativa da verdade, na qual a única coerção admitida é a do melhor argumento”.
Dessa forma, as condutas e normas morais devem ultrapassar a mesquinhez dos interesses privados e basear-se no interesse de todos. Do mesmo modo, os meios de comunicação devem ser compartilhados de modo livre e igualitário, por sujeitos que pensam e agem comunicativamente em busca de consensos. Para além de informar – ou formar – eles devem propiciar o diálogo, sempre em busca do melhor argumento.
A relevância da Ética do Discurso de Habermas consiste em encorajar e promover a participação efetiva do cidadão nas discussões públicas e nas definições das normas morais e jurídicas. As mídias independentes, livres, participativas, propiciam os meios tecnológicos e comunicacionais necessários para que os membros de uma determinada comunidade – seja ela uma nação, um Estado ou uma cidade – determinem e convencionem suas condutas através do diálogo, de modo participativo, aberto e plural. Transpondo a barreira entre ação e comunicação.