Search
Close this search box.

Lições de abismo

Compartilhar conteúdo:

abismoO que resta ao homem que sabe, com a certeza de informações cronológicas, que está à beira da morte, corroído pela doença? É o que podemos ver no livro “Lições de abismo”, do grande escritor e pensador brasileiro Gustavo Corção, pelo menos para o homem dotado de alguma capacidade e vivência que o permitam olhar para a vida – e para a morte – sem a histeria de um desvairado, sem o temor de encontrar o nada, mas com a vontade de entregar-se nas mãos de Deus.

José Maria, o personagem, faz-se Parsifal, o “inocente tolo” da ópera de Richard Wagner, que consegue desvencilhar-se dos ardis sedutores de Kundry para ser o Rei do Graal, o Cálice Sagrado com o qual Cristo celebrou a Última Ceia e que recebeu seu sangue santo derramado na cruz. Parsifal consegue, por graça de Deus, resistir à sedução de Kundry e destruir o jardim das donzelas-flores, plantado num ato de vingança pelo maligno Klingsor para aprisionar os Cavaleiros Templários, que o rejeitaram por sua torpeza de espírito, insuficiente para ser um dos guardiões do Graal. Klingsor é o anjo decaído que se rebela contra o Pai e envia seus agentes – Kundry e as donzelas-flores – para impedir os homens de acercarem-se do Graal e louvarem Nosso Senhor.

Kundry é a Morte que persegue José Maria de perto e quer levá-lo preso. Mas José Maria, transformado num Parsifal contemporâneo, sabe que deve vencer esta batalha para poder partir, não como um depressivo cativo, aterrado numa morte melancólica, e sim como um liberto, de espírito aberto, rumo ao doce encontro com Nosso Senhor.

José Maria, abandonado pela mulher e pelo filho, resiste aos clamores da melancolia de uma morte solitária e não se apega ao frenesi de uma apropriação louca de cada minuto que resta. Não se entrega, desprecatado, aos poucos prazeres que ainda pode desfrutar nesse pouco tempo. Não! Seus melhores esforços, nessa reta final da existência mundana, os poucos que pode arrostar com algum proveito nobre, são empregados somente para si mesmo. Não de forma egoísta, não se fechando em si como se fosse uma velha caixa de papelão prestes a rasgar-se, isolado, perdido, escondido do que ele teme. Ele abre-se a si mesmo, iluminado pelo facho de luz opaca que sai da sua vida. O que ele fez durante esse tempo?, pergunta-se inicialmente, e lança o olhar crítico sobre o mundo tomado pelo coletivismo estúpido e pelos vícios das ideologias que querem explicar o mundo como se fosse um relógio de um ponteiro só.

Mas não são os atos que eram do seu dever que o vexam nesses derradeiros momentos, nem mesmo o sempre defeituoso mundo, repleto de pessoas igualmente defeituosas e frívolas. Fez o que deveria fazer, e não há nada de errado nisto. A pergunta que se impõe, agora mais consciente, é: o que não fiz? Eis o que lhe preenche alma nos últimos dias de sua vida. É esta pergunta que o fará triunfar diante dessa mórbida Kundry.

O que não foi feito, porém, pode sê-lo naquele instante fugaz, pois é uma tarefa que exige mais vontade do que tempo. É conhecer-se, abrir os recantos de sua alma para si mesmo. Muitos foram os motivos para o adiamento quase fatal desta tarefa. A fuga da mistura, do emaranhado de outras almas, pobres almas, é uma dessas omissões, conforme confessou na emblemática conversa com o Dr. Aquiles:

“- A história de minhas omissões, tôda a minha história cabe nestas poucas palavras: um insensato horror à mistura. Foi o senhor mesmo que descobriu. Realmente, eu sonhava um mundo de cristal… queria ter no sangue rubis verdadeiros, de Bruma!

– Mas esses rubis existem! exclamou o doutor.

– Eu sei.

– Existe o genuíno, existe a verdade, mas é preciso buscá-la nas mistura, é preciso aceitar por algum tempo a confusão do joio e do trigo. Deus poupou-lhe o calor do meio-dia, que a Êle mesmo fatigou, quando veio sentar-se junto ao poço de Jacó, para dizer à moça samaritana que chegara o momento de adorar a Deus em espírito e verdade. Deus poupou-lhe de tudo isso, mas agora permita-me dizer-lhe uma coisa muito importante: Êle não dispensa um mínimo, um mínimo que, explorado a fundo, pode transformar-se em um máximo. Êle não dispensa um certo mínimo, mesmo na undécima hora…”

A tola busca de uma pureza sem o contato com a miséria do mundo o fez apenas mais miserável, distante de si e mais ainda do outro. Não mergulhou ele nos abismos da subjetividade, da sua própria, do pecador, do virtuoso, do fariseu, enfim, de ninguém, e por isto anda a praticar, nos derradeiros suspiros, lições de abismo, aquelas mesmas de que falou Julio Verne, antes de pular de cabeça, antes que seja tarde. E ele parte, tomado de coragem, para o encontro, para o definitivo reparo de uma vida que quase malogrou.

Não fosse a morte certa, e já bem próxima, José Maria teria partido sem experimentar o doce sabor de se reconhecer, naquela undécima hora de que lhe falou o Dr. Aquiles, uma alma que, embora ainda deguste resquícios de um antigo amargor, está agora iluminada pelo resplandecente facho da vibrante luz divina, a qual Kundry nenhuma é capaz de eclipsar.