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Homofobia e “privilégios”: o enterro do PLC nº 122/06

A recente aprovação pelo Senado do apensamento do PLC nº 122/2006 – que, dentre outras previsões, tornaria crime a prática da homofobia – ao projeto de reforma do Código Penal se reveste de um claro simbolismo: ao tirar-lhe vida própria, sufocando suas disposições específicas e limitando-o à condição de reles apêndice de uma codificação mais ampla, a bancada evangélica/neopentecostal impôs uma fragorosa derrota à consagração de direitos protetivos ao historicamente marginalizado segmento das lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBTTTs) de nossa sociedade.

Juntamente com a atípica presidência do deputado/pastor Marco Feliciano junto a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o triunfo do fundamentalismo sob as pautas da agenda LGBTTT no Congresso Nacional neste ano consagrou-se com a inanição do aludido projeto na sessão plenária da última terça-feira (17), ainda que, também em 2013, reações tenham partido deste mesmo parlamento em consórcio com a sociedade civil organizada e não-organizada, a exemplo de valorosas iniciativas como a criação da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos e da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos, espaços criados para o amplo debate de temas vetados por Feliciano e seu séquito na CDHM.

A falaciosa ideia de que o projeto de lei encampa privilégios – tese levada insistentemente a frente pelos seus algozes – é reproduzida ad nauseam por hordas de desinformados que, na esteira das deselegantes e infantis provocações de Jair Bolsonaro e das vulcânicas pregações sacerdotais de lideranças como Silas Malafaias e o próprio Marco Feliciano, sequer se deram ao trabalho de ler o seu texto na íntegra.

O projeto se propunha a alterar a Lei nº 7.716/89 (que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) e o § 3º do art. 140 do Código Penal. O artigo primeiro daquele diploma, que traz em seu enunciado que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, passaria a ter seguinte redação (destacamos):

“Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.” Observemos que a alteração aborda a proteção a idosos e pessoas com deficiência física, também prejudicados pelo furor inquisitorial dos autoproclamados guardiães da família e da moralidade cristã.

O § 3º do art. 140 do Código Penal, por sua vez, prevê a figura da injúria qualificada, contendo sanções mais severas quando as ofensas consistem na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Nele seria feita adição semelhante à do parágrafo acima.

Ou seja: já existe um rol de “privilegiados” em nossa legislação, quais sejam, estrangeiros, idosos, deficientes físicos e minorias étnicas e religiosas, segmentos que perfazem potenciais alvos de uma opressão (seja xenofóbica, racista ou religiosa) que, para além da sociedade em si, parte muitas vezes do próprio Estado, vide o descaso para com políticas públicas de acessibilidade além do tratamento dispensado à população negra e às religiões de matriz africana tanto hoje, pelas forças policiais de patrulhamento ostensivo, como pela Casa Grande durante os quase quatrocentos anos de regime escravocrata  no Brasil.

O que o projeto de lei pretende – ou pretendia -, assim, é incluir nessa categoria de “privilegiados” aqueles que são vítimas de discriminação e preconceito em razão de deficiência física, idade, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, conferindo normatividade ao princípio constitucional da isonomia (material) consubstanciado na máxima aristotélica de que se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.

Embora os motivos para a criação de lei específica no sentido de institucionalizar direitos ao segmento LGBTTT sejam os mesmos que levaram o legislador a dar tratamento especial aos listados no art. 1º da Lei nº 7.715/89 e no § 3º do art. 140 do Código Penal (o quadro permanente e cultural de discriminação e preconceito, o descaso do poder público para com a implementação de políticas públicas inclusivas, a violência física e psicológica, etc), há uma irracional resistência em reconhecer que, diante de uma hegemônica cultura machista, heteronormativa e homofóbica responsável pela sonegação de direitos fundamentais à população homoafetiva, uma regulamentação específica consistiria, da mesma forma como ocorreu com a criminalização do racismo, em um grande passo na luta contra as amarras de uma discriminação histórica que impede que as pessoas vivam com um mínimo de dignidade em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

O mais interessante é que o enterro definitivo do PLC 122/06 se insere na contramão da recente entrada em vigor de uma série legislações de viés progressista que buscam exatamente salvaguardar segmentos da sociedade em situação de vulnerabilidade social, econômica e cultural. É o exemplo do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), da Lei de acessibilidade para portadores de deficiência ou de mobilidade reduzida (Lei nº 10.098/00) e da Lei nº 11.340/06, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, que além de instrumentalizar o combate ao machismo e à violência doméstica e familiar, institui, em seu artigo 5º, o afeto como elemento motriz na caracterização do núcleo familiar, independentemente da orientação sexual de seus membros.

Subcidadania

A sede em negar direitos, todavia, parece não ter fim. O senador Vital do Rêgo (PMDB-PB) encartou a Emenda nº 809 no Projeto de Lei nº 236/2012, que trata da reforma do Código Penal. Na emenda (acatada pela relator), sugere a exclusão dos termos “gênero”, “identidade de gênero” e “orientação sexual” do texto legal sob a seguinte justificativa[1]:

“No art. 75 e ainda em vários outros dispositivos do Substituto preliminar, deve ser excluída as referências a “gênero”, “identidade de gênero”, “identidade sexual”, “opção sexual” ou “orientação sexual”. Tais expressões não encontram definição consensual na doutrina nem constam na nossa tradição legislativa. Conforme argumenta o Senador em suas emendas, há vasta literatura que denuncia o uso de tais conceitos mais como uma “ideologia de gênero” do que propriamente como uma “política de gênero””.

O senador precisa urgentemente se atualizar. “Identidade de gênero”, por exemplo, é termo academicamente sedimentado na Psicologia e na Neurobiologia. E não é de hoje. Ainda, trata-se de terminologia hegemônica – para não dizer consensual – dentro da perspectiva geral dos estudos de gênero. É, inclusive, a utilizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela American Psychiatric Association (APA). Uma pesquisa superficial acerca das publicações temáticas é suficiente pra constatar que não há controvérsias terminológicas acerca da expressão. Vê-se, assim, que as ponderações do parlamentar carecem completamente de amparo científico.

No lastro desses acontecimentos, o incontido júbilo de alguns parlamentares e líderes evangélicos e neopentecostais nas redes sociais dá alguma ideia da dimensão representativa de seus festejos, fruto dos inglórios esforços empreendidos no sentido de manter homossexuais e afins na condição de subcidadania para a qual a homofobia diuturnamente os empurra.

Incapazes de perceber que a concretização de direitos está longe de se tratar de privilégios, não atentam que a lunática tese da criação de uma “casta de privilegiados” remete diretamente à deslegitimação da própria Constituição Federal e de leis como os já mencionados Estatuto da Igualdade Racial, Estatuto do Idoso, Lei de Acessibilidade e Lei Maria da Penha, uma vez que, a exemplo do que pretendia o PLC nº 122/06, são diplomas que, visando concretizar diretrizes constitucionais, institucionalizaram direitos e garantias a setores socialmente fragilizados ante o processo histórico de permanente opressão a que foram e são submetidos e que os subalterniza ainda hoje, mesmo após suas respectivas promulgações.

Também neste ano, a CDHM da Câmara aprovou projeto de lei que permite que organizações religiosas expulsem de seus templos pessoas que “violem seus valores, crenças e liturgias”, em óbvia referência a homossexuais, além de ter sido aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça também da Câmara dos Deputados a PEC nº 99/2011, que estende a legitimidade ativa para entidades religiosas de âmbito nacional poderem ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade junto ao STF.

Hoje, é o PLC nº 122/06 que é sepultado. Amanhã, o estado laico.

 



[1] Iniciativa semelhante foi feita quanto ao PLC nº 103/2012, que estabelece o Plano Nacional de Educação para os próximos 10 anos, tendo ocorrido a retirada de tais termos do seu texto sob idêntica justificativa.