Os shoppings centers vivem um mal-estar em todo o país. Um pânico moral se formou em torno de uma suposta “delinquência” de certos grupos de jovens, que, reunidos em determinados pontos, estariam a ameaçar integridade das lojas e a paz dos consumidores ordeiros. São “funkeiros”, “manos”, “pintas”, tribos urbanas vindas da periferia e que, cada vez em maior número, reúnem-se nos shoppings centers das capitais brasileiras para se divertir, consumir, conversar, se exibir. A presença indesejada desses “consumidores perigosos e estranhos” começa a gerar conflitos mais explícitos e acirrados. De um lado, medidas de segurança e vigilância, a entrada da polícia, prisões e o acompanhamento ostensivo e impedimento dos “grupos suspeitos” com a justificativa de prevenir “arrastões” e “badernas”, e, de outro, protestos começam a ser organizados contra tais atitudes segregadoras e discriminatórias das direções e seguranças desses estabelecimentos comerciais.
Natal não está de fora do fenômeno. Nos últimos dias, o Midway Mall tomou medidas semelhantes para “reforçar a segurança”, vigiando de perto e mesmo impedindo “jovens de comportamento e vestuário suspeito”, os chamados “pintas” – jovens da periferia de Natal que possuem um estilo bem peculiar de se vestir com bermudões largos, camisas folgadas e sandálias de marcas específicas entre outros gostos especificadores desta quase tribo urbana da capital potiguar.
Em comum com outros casos, temos um investimento segregador, higienista e discriminatório contra jovens de origem popular, contra os seus estilos musicais, seu jeito de vestir, andar, falar, enfim, uma estigmatização completa de sua sociabilidade. Esta estigmatização consiste em relacionar previamente seus hábitos, seus gostos e estilos de consumo a comportamentos antissociais e infratores, os quais, sem maiores justificativas, colocariam em risco os bens, os consumidores e a propriedade em geral.
A combinação entre a melhora relativa nas condições de vida das classes populares nos últimos anos, apelo consumista generalizado e desigualdade social produz uma síntese perversa e contraditória. Somos todos constantemente coagidos e seduzidos para enxergar no consumo a receita infalível para uma boa vida, para o reconhecimento social e a autorrealização individual. A sedução do consumo que transforma o ato de comprar em condição indispensável para a felicidade e, sobretudo, para a dignidade social produz o desejo irrefreável e cada vez mais generalizado entre as classes sociais de fazer parte desse universo de fantasia e realização. De modo que, os antes economicamente excluídos do consumo de lazer começam a reivindicar o seu quinhão nesse mundo da ostentação e da fruição consumista, pois enxergam nele, tal como as classes estabelecidas, um meio indispensável para alcançar um lugar no mundo, quer dizer, dar sentido a vida. O mercado convoca todos, inclusive os classificados como “indesejáveis”.
Dessa maneira, os “indesejáveis sociais” passam a adentrar e se situar cada vez mais perto dos que antes acreditavam-se por sua condição “privilegiados” e “distintos”. De repente, lugares antes tão exclusivos e socialmente homogêneos tornam-se, na visão indignada e exaltada da classe média estabelecida, lugares muito “misturados”, repleto de “pessoas feias, estranhas”. Os conflitos e os clamores para retomar a ordem natural das coisas são inevitáveis.
É preciso então uma maneira de lidar com esses “indesejáveis sociais” cuja presença, no caso dos shoppings centers e outros espaços de lazer e consumo, é vista como uma ameaça de contaminação do clima de família, de “consumidores de bem” que só querem relaxar e gastar tranquilamente o seu suado dinheiro. Nesse sentido, o que temos visto nos shoppings centers, e o Midway tem adotado estratégia semelhante, é uma política de limpeza social e de classe que visa controlar jovens classificados previamente como suspeitos, ou mesmo previamente culpados. Nem mesmo o flagrante impedimento de direitos fundamentais como de ir e vir, ao lazer e ser tratado com igualdade parecem ser obstáculos ou razões suficientes para as direções desses estabelecimentos, assim como para os que aplaudem tais medidas repensarem suas posições e estratégias generalizadoras e abusivas. Barrar uma classe de pessoas e impedir o exercício de direitos por causa de esteriótipos generalizadores e previamente a qualquer atitude ilícita cometida é uma arbitrariedade, uma discriminação, uma violência. O que a administração do Midway está fazendo é pressupor comportamentos, caráter, condutas com base em vestimentas, cor de pele, jeito de andar e falar. Isto é inaceitável.
Não se trata de negar a existência de infrações e ilícitos cometidos no interior do shopping; brigas, correrias, badernas ocorrem, certamente. Trata-se sim de questionar e criticar o tratamento e a “solução” dada ao problema. Ora, sobre os jovens de periferia já pesam os olhares reprovadores, a desconfiança, o medo e a indiferença social. A atitude do shopping somente reforça os estigmas já cotidiana e duramente vivenciados por esses jovens. Fazer uso da criminalização antecipada e condenatória e generalizar todos os “pintas” como potencialmente perigosos e danosos só trarão mais conflitos e problemas para a administração.
Engana-se quem pensa que tais medidas de controle e contenção do acesso dos jovens da periferia aos shoppings centers são estratégias isoladas. Não, muito pelo contrário. Elas integram e reforçam todo um conjunto de práticas sociais e discursos que visam exatamente segregar e estigmatizar esses jovens. Tais práticas vão desde políticas públicas que asseguram o desinvestimento social do Estado gerando a ausência de espaços de lazer e consumo e garantido a exclusão dos existentes até programas policiais que constroem e reforçam cotidianamente a percepção social das periferias como áreas problemáticas, tomadas pelo crime e que não passam de depósitos de pobres, anormais, desajustados e de jovens selvagens que integram grupos violentos e criminosos como torcidas organizadas, galeras de baile funk, gangues , etc..
A atitude do Midway é mais um dos mecanismos para assegurar a exclusão urbana dos mais pobres, privando-os da sociabilidade, do interagir e do fruir que os shoppings centers proporcionam. Ora, e a maneira de garantir tal objetivo é apelar aos estereótipos generalizadores que criminalizam os jovens de periferia, suas roupas, seu andar, seu vocabulário, seu corpo, sua estética e ethos. E, assim, garantir que eles continuem a estar onde devem estar, quer dizer, longe das “boas famílias” e dos jovens asseados que deslizam candidamente sobre o piso reluzente dos largos corredores das catedrais do consumo moderno, os shoppings. Que continuem como párias do consumo, mesmo que para isso se tenha que lesar e impedir sua cidadania. Aliás, situações como a que estamos a assistir no Midway Mall mostram como a cidadania, o direito a ter direitos e exercê-los sem impedimentos não é uma condição adquirida ou garantida de uma vez por todas e para todos, mas um “processo instituído” tenso e desigual, que precisa ser continuamente conquistado e reassegurado. Nesse sentido, é imprescindível os protestos e a crítica social.