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Um banho de estrelas

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Por Andrea Monteiro, Professora do IF do Sertão Pernambuco

 

Vou começar com uma sugestão: se você estiver dirigindo por uma de nossas roodovias à noite, pare no acostamento, desça, direcione o seu olhar para o céu e tome um banho de estrelas. Claro, boas experiências são potencializadas se compartilhadas. Mas, atenção!, você já se deu conta de quantas vezes você comtemplou as estrelas durante este ano? Sabia que as gerações mais antigas faziam isso com mais frequência do que nós? Do céu, eles extraiam várias possibilidades de leitura e sentidos para vida e o mundo social. Não é toa que ainda resiste uma tradição de ao sermos surpreendidos pela força da trajetória de corpos luminosos que riscam o céu, pensamos na realização de algo que desejamos. A cura de certas enfermidades, as colheitas, ou o início de mais um dia, todos esses e muitos outros detalhes e organização da vida eram planejadas a partir da leitura dos mapas produzidos pelas estrelas.

Com o avanço da racionalidade instrumental, da calculabilidade e das descobertas científicas na vida cotidiana, bem como a produção dos bens em larga escala, foi-se fortalecendo os elementos estruturantes de contornos do estilo de vida urbana. Da tradição à racionalização da ciência. Para as enfermidades, a medicalização. Certeza da colheita? Resolvemos com a técnica, com as máquinas, manipulações de sementes e conhecimento climático. A mediação com o desejo? Questione a linguagem no divã, com o analista. E assim fomos seguindo um caminho marcado por um intenso e contínuo movimento dialético de construção de uma realidade destradicionalizada que vai tornando desnecessário o uso da percepção e do uso dos sentidos básicos.

Agora, voltando ao banho de estrelas… Garanto que pode te deixar inebriado. Mas a lógica das forças do tempo, do relógio e dos compromissos te chama, através das luzes elétricas da cidade mais próxima, e aí, ligando o motor novamente, podemos ser recepcionados pelas decorações de fim de ano, isso ocorrerá você esteja rumando para qualquer lugar. Você pode estar voltando para Petrolina ou para Natal.  Como estamos no mês de acendermos chamas luminosas que alimentem a esperança em sermos melhores, a chegada, mais uma vez, dessas festividades podem aguçar a nossa sensibilidade em relação à construção e ao fortalecimento dos traços da nossa memória.

Memória? Como assim? O que é a memória? Para que serve? A memória é o que dá sentido ao que somos e faz as pontes entre o que fomos e o que queremos ser. Mas, pensando no mundo em que vivemos, no qual o mercado nos cobra uma dedicação extrema ao aqui e agora, como mantermos ou termos propriedade sobre os elementos constitutivos do que (e quem) somos ou que gostaríamos de ser?

Uma possibilidade de refletir sobre a questão está em atentarmos para uma das características intrínsecas da lógica do mercado: a necessidade de produção e consumo em uma velocidade cada vez maior, condição necessária para que o sistema se realize com fluidez. E como ainda não temos instrumentos fortes suficientes que possam ser mobilizados para se contrapor a esse modelo, essa lógica operacional arrasta consigo o engessamento da nossa vida, moldando nossas disposições ao consumismo. É uma lógica que conspira contra qualquer possibilidade de singularidade, de relações estáveis e permanentes, seja entre pessoas, entre os bens materiais ou entre os elementos que servem para construção do mapa de nossa história e memória. Tudo o que é sólido se desmancha com muito mais rapidez.

Passeando pelas ruas da cidade podemos ver lugares e espaços que frequentamos sendo postos a baixo para ali serem edificados outros. A escola em que você estudou, a livraria na qual comprou aquele bom livro, o banco da família, o hospital, a sorveteria, os restaurantes e até o templo sagrado que você frequentou, todos esses espaços vão sendo engolidos pela indústria imobiliária, reduzidos à condição de mercadoria. Agora é a vez dos hotéis, call centers, shoppings, condomínios, centros comerciais e lugares cujo objetivo é servir à economia de serviços.

O Brasil de 2014 será palco dos jogos da Copa do mundo e seremos a plateia de mais um espetáculo produzido pela força de um sistema econômico que draga e esmaga as singularidades dos espaços das cidades. Essa Copa, que nos dizem os seus defensores, além de deixar “legados”, trará para o nosso convívio algumas “estrelas”. Mas as estrelas do espetáculo global são demasiadas furtuitas e de brilho fugaz. Aquelas que iluminam o que há de melhor em cada um de nós estão, desde sempre, à disposição de nosso olhar, acima das nossas cabeças. Com uma lógica temporal tão rara e necessária nestes tempos! Mas que, para o nosso deleite, basta nos afastarmos um pouquinho do mundo da iluminação artificial dos espaços de consumo e comtemplarmos o céu para um banho de estrelas.