Por Ivenio Hermes
É indiscutível que o sistema de segurança pública brasileiro é falho, começando com a estruturação das polícias, passando pela falta de objetividade e direcionamento das ações de segurança, e culminando com as dezenas de ações que apenas tapam os buracos que são cada vez maiores. Entre os problemas, está na imagem global das polícias, que ao invés de promoverem segurança e proteção, são propagadoras do medo e doutrinariamente impulsionadas para a violência.
(Publicado em parceria com Cezar Alves via Jornal De Fato/Retratos do Oeste)
A sociedade brasileira tem sido vendada por ações policiais, que legitimam a violência como força motriz para o desencadeamento do sucesso. A diferença é que o pano usado nos olhos da sociedade varia de seda para os mais poderosos, que enxergam as minorias de longe e confortavelmente seguros pela proteção adquirida com seu dinheiro, a trapos, usados nos olhos dos menos favorecidos, sendo induzidos a manter equivocadamente status quo através de seu voto ou pelo medo.
No dia 4/12/2013 representantes das polícias federais e estaduais fizeram um manifesto sem precedentes na história das polícias nacionais. Contando com mais de 15 mil policiais, entre federais (DPF e DPRF) e estaduais (Civis e Militares) de todo o país, o ato pedia a restruturação das carreiras policiais, e também mudanças específicas em cada categoria.
Um protesto dessa magnitude não teria como fluir sem causar transtornos ao trânsito ou sem desagradar algumas categorias políticas e policiais, porém o que se presa é o futuro da segurança pública brasileira, que se transformou numa engrenagem travada pela ferrugem, provocando um sofrimento maior na sociedade. E de solavanco iniciou ferindo o orgulho de alguns integrantes da classe dos delegados através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra a Lei nº 12.830/13, cujo conteúdo amplia o poder dos delegados.
A manifestação, contudo, foi mais ampla e abrangeu os seguintes pontos:
O Ciclo Completo da Atividade Policial
Que trata de uma ampliação nas ações das policias estaduais. Hoje, teoricamente, a Polícia Civil cuida da investigação e a Polícia Militar do policiamento ostensivo/preventivo, mas as duas entidades misturam atribuições, e como exemplo máximo disso citamos a Core (Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais) da Polícia Civil do Rio de Janeiro, fazendo o trabalho ostensivo e o Serviço Reservado na Polícia Militar, trabalhando com investigações. O que se faz hodiernamente sob a forma de desvio de função, seria legalizado e os Estados teriam a opção de definir como seria feito esse trabalho, se estratificado territorialmente ou por tipos criminais ou áreas de investigação, ou ainda através de uma unificação, da qual discordo, consoante com o pensamento do ex-secretário Nacional de Segurança Pública e Psicopedagogo Ricardo Balestreri, que contribui com a seguinte opinião:
“Multiplicidade de polícias especializadas, nos moldes do primeiro mundo democrático, todas de ciclo completo. Não sou e nem nunca fui a favor de unificação de polícias, ideia que considero bem intencionada mas de corte autoritário e muito perigoso. Polícia única não possibilita a inter-vigilância institucional, fundamental para a democracia e a cidadania. Logo se torna monopólio de informações e manipulações políticas. Nas democracias avançadas há muitas polícias para fins diversos, que não se entrechocam”. Ricardo Balestreri, ex-secretário Nacional de Segurança Pública.
O modelo da territorialização de investigações/policiamento ostensivo ou da definição de tipos ilícitos a serem investigados também poderiam ser utilizados na PF e na PRF. O ciclo completo traria uma concorrência salutar entre as polícias, cada uma buscando realizar um melhor trabalho ou colaborando entre si, e o maior beneficiado seria a sociedade.
A Carreira Única
Nesse ponto as divergências são baseadas na busca pela exclusividade desejada por muitos membros da classe dos delegados de polícia. Hoje não há mérito no trabalho de gestão policial, nem tampouco na ascensão, pois os delegados já iniciam a carreira como gestores, enquanto outras classes ficam eternamente achatadas no crescimento dentro da instituição.
Fundamentada na meritocracia, os policias galgariam funções superiores pelo mérito, através de estudos e aperfeiçoamentos que poderiam ser mensurados em concursos internos. Não haveria a eternização dos agentes e portanto, para sempre subordinados a delegados cuja função foi estabelecida num concurso externo e que nem sempre representa o mérito no trabalho efetivo. E isso não prejudicaria os atuais delegados, mas possibilitaria os atuais servidores e futuros ingressantes nas polícias, a construírem suas carreiras.
Embora esse novo modelo careça de uma estruturação bem elaborada, ele não é novidade, é assim no FBI (Federal Bureau of Investigation), a polícia federal norte americana, e no Brasil a PRF (Polícia Rodoviária Federal) adota um modelo semelhante e que poderia ser estudado, melhorado e utilizado no Brasil. E sobre a possível reestruturação ser impedida por questões de classe, em sua resposta para o Grupo de Trabalho da FENAPEF em 28/08/2012, o próprio Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, declarou:
“Se vocês fossem PRFs já teriam conseguido a reestruturação. O problema é que vocês são PFs, e na PF existem outros cargos que são contra essa reestruturação. Desculpem, mas eu não posso assinar para agradar a vocês e desagradar os delegados. Vocês tinham que ter consenso entre todos os cargos, mas vocês não tem.” José Eduardo Cardoso – Ministro da Justiça
Entretanto, questões de classes não devem estar acima do bem social, e é a sociedade brasileira, novamente, a maior beneficiada, afinal, a estrutura atual causa sensível prejuízo no trabalho policial pela desmotivação para o trabalho, a ausência de mérito para o exercício de uma função.
A Desmilitarização
A vilã do momento por ter sua estrutura centrada no militarismo é a Polícia Militar, e sobre esse aspecto que a predispõe para ações herméticas e muito centradas em si mesma, a ONU até se manifestou pelo seu fim como organização policial. Embora a truculência policial seja atribuída à PM pelo termo militarismo, é preciso destacar que a doutrina de treinamento militar, da hierarquia imperativa e de dois grupos de policiais, praças e oficiais, é o que contribui para que haja uma confusão entre “ser policial” e “ser militar”.
A Polícia Militar já surge com a designação equivocada de “Força Auxiliar” das Forças Armadas, colocando seus policiais sob uma hierarquia que os oprime e cujo sistema de corregedoria diferenciado ajuda a promover impunidade e as condutas paralelas ilegais de policiais que se confundem com militares. Buscamos na ficção Battlestar Galactica uma das afirmações mais pertinentes ao perigo de confundir militares com policiais:
“Há uma razão para separar os militares da polícia. Um luta contra os inimigos do Estado. O outro serve e protege as pessoas. Quando os dois se tornam um só, logo, os inimigos do Estado tendem a se tornar as pessoas.” – Willian Adama, Comandante Geral.
A desmilitarização flexibilizaria a rigidez excessiva que existe dentro da estrutura das polícias militares, sem contudo acabar com a cadeia de comando, tendo assim mais controle externo da atividade policial e recriando um profissional para exercer seu trabalho com desenvoltura e aceitação social.
E novamente ressaltamos que isso não é novidade, é assim na maioria das polícias norte americanas e um modelo semelhante adotado pela PRF, que também poderia evoluir em sua própria hierarquia horizontalizada.
Nem todo processo evolutivo é totalmente indolor, algumas vezes a natureza empurra certas espécies ao quase extermínio para que elas percebam que está na hora de mudar. Para que a evolução da segurança pública ocorra, é preciso que os gestores atuais e ocupantes de algumas classes visem se integrar em busca de soluções que redefinam o modelo atual ultrapassado.
Diversas PECs tramitam buscando cada uma sua forma de recriar as polícias brasileiras, são muitas propostas tratando do paradigma da segurança pública e de restruturação das carreiras policiais. Todas devem ser analisadas criteriosamente, pondo de lado os lobbies, os orgulhos e o preconceito classista e a ambição individual, sentimentos pobres que devem ser esquecidos em busca de promover segurança para quem precisa de segurança, proteção para quem precisa de proteção e polícia para quem precisa de polícia.
_______________
SOBRE O AUTOR:
Ivenio Hermes é Escritor Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública e Ganhador de prêmio literário Tancredo Neves. Colaborador e Associado Pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Consultor de Segurança Pública da OAB/RN Mossoró. Integrante do Conselho Editorial e Colunista da Carta Potiguar. Pesquisador nas áreas de Criminologia, Direitos Humanos, Direito e Ensino Policial.