Em 17 de março de 2010, comecei uma série de artigos sobre o tema das cotas raciais nas universidades brasileiras. Uma parte 2 foi publicada no dia 31 do mesmo mês e foi seguida de uma terceira parte no dia 29 de abril de 2010. As duas últimas foram praticamente respostas aos comentários da primeira parte, e na ocasião eu me “posicionava” contra as cotas, tentando, apesar de tudo, não desprezar de antemão todos os argumentos dos “racialistas” nem acatar todas as ideias dos “negacionistas”.
Desde então muita coisa mudou, muitos debates aconteceram, muita polêmica rolou, várias políticas públicas foram propostas, um controverso Estatuto da Igualdade Racial entrou em vigor e várias pesquisas mostraram o impacto da inserção de cotas raciais nas universidades. E minha posição também mudou.
Obstáculos para entrar na Academia
No processo de seleção para o ingresso nas universidades brasileiras, não há racismo direto. Não há discriminação racial no vestibular, apenas se discrimina a capacidade de se fazer uma determinada pontuação numa prova. Dessa forma, qualquer pessoa que não tenha recebido o preparo necessário (o que a escola pública deveria oferecer) ou que não tenha se preparado para fazer a prova do vestibular terá mais dificuldades de entrar na universidade do que aqueles que tiveram dinheiro para pagar uma escola particular ou um cursinho pré-vestibular.
Mas se não há racismo direto no acesso à universidade, há racismo indireto? Há. Uma vez que a maioria dos pobres é negra e que a maioria dos pobres e negros não podem senão frequentar as escolas públicas, que não os qualifica para a seleção do vestibular, apenas uma minoria de negros entra na universidade. Se tivermos em mente, ainda, o sutil mas muito sério preconceito que temos a respeito dos negros ou das pessoas que têm alguns traços de ascendência africana, segundo o qual essas pessoas são menos capazes do que os brancos, crença compartilhada inclusive por grande parte dos negros, há uma dificuldade a mais: elas têm, em geral, menos autoconfiança em sua capacidade de passar numa prova, muito menos no vestibular, que é cercado de uma aura sagrada e causa enorme tensão nos candidatos. Certa vez perguntei a um jovem quilombola que estava terminando o Ensino Médio se ele pretendia fazer vestibular. Sua resposta foi:
Vou fazer, mas a gente aqui não tem muita chance de passar, não.
Esse é apenas um caso ameno entre as tantas dificuldades de os negros cursarem uma universidade. Não podemos ignorar que há uma grande quantidade de pessoas pobres (a maioria das quais negras) que não têm oportunidade de estudar o ensino fundamental, muitas vezes porque as vicissitudes da vida os obrigam a trabalhar em tempo integral desde cedo.
Não devemos menosprezar o impacto que essa exclusão generalizada tem sobre a maneira como nossa cultura tende a representar os negros, como se fossem incapazes de adquirir as formas socialmente prestigiadas de conhecimento ou, numa perspectiva neoliberal, individualista e que endossa uma meritocracia acrítica, fossem preguiçosos e não conseguissem entrar na universidade por falta de interesse e/ou esforço. As pouquíssimas exceções não servem para provar essa perspectiva a não ser que esta seja imbuída de um teor racista.
Sim, somos racistas. E as discussões sobre as cotas raciais devem se voltar para a reflexão sobre os possíveis meios de se atenuar o racismo no Brasil. A proposta de cotas é uma resposta ao problema do racismo. Este não surgiu do nada na cabeça dos favoráveis às cotas. Não só existe racismo no Brasil, como ele está ligado à coincidência entre a distribuição racial e social, ou seja, a maioria dos pobres é negra, “parda”, indígena, a maioria dos ricos é branca. Muitos dos que se opõem às cotas raciais desenham o retrato de um Brasil bem menos racista do que pensam os pró-cotas. Propõem a “solução” das cotas sociais, que em si mesma é válida como política de ação afirmativa, mas não substitui (e não exclui) o valor simbólico de uma política cujo foco é o combate ao racismo.
O vestibular e a vocação acadêmica
Não é possível falar de meritocracia numa sociedade que não dá condições iguais para que todos possam competir igualmente. Não faz nenhum sentido apregoar a ideologia do esforço individual como única forma legítima de competição num país cuja história recente excluiu um gigantesco contingente populacional dos recursos necessários para “ser bem-sucedido”. Embora haja exceções, a maioria esmagadora das pessoas que “se dão bem” já nasceram em famílias com um mínimo de condições financeiras e capital cultural necessários para frequentar uma escola até o fim do 2º grau, prestar vestibular, cursar uma universidade e conseguir um emprego. Uma das formas de se atenuar a desigualdade desse processo seria instaurar de uma vez por todas um sistema educacional público (no mínimo) bom. Mas os efeitos disso se fariam sentir a longo prazo e não alcançariam o fundo do problema urgente que as cotas raciais tentam combater de imediato, que é o racismo.
Um dos argumentos “negacionistas” diz que instituir cotas raciais implica constituir uma divisão racial que não existe na realidade ou que, se existe, é muito sutil e difusa. Para eles, nomear as “raças” dos candidatos ao vestibular significaria reforçar o racismo ou até mesmo criar um tipo de racismo que não existe no Brasil.Porém, os conflitos raciais (quando há) entre cotistas e não-cotistas nas universidades não são uma consequência da criação das cotas. Eles são um reflexo de um conflito pré-existente. O preconceito que sofrem os cotistas negros poderia ser explicado por um suposto oportunismo da parte deles, uma acusação de que eles querem levar vantagem em cima dos outros candidatos que não precisam de (ou que não podem se qualificar a) cotas. Mas os cotistas estão exercendo um direito oferecido pelo Estado e a maioria deles está tentando com isso conseguir condições de cursar uma universidade, para o que o mero esforço individual geralmente não se mostra suficiente.
Se os conflitos raciais se evidenciam quando pessoas negras entram nas universidades através do sistema de cotas, não é que eles estejam sendo engendrados pela “cisão racial” desse sistema. O racismo é ubíquo e, nas situações cotidianas, parece muitas vezes não existir, estando na verdade ostensivamente oculto. A aparente harmonia (“democracia”) racial no Brasil é uma paz relativa que só se mantém enquanto negros, brancos, índios etc. se mantêm “em seus lugares”, ou seja, nas posições de poder tradicionalmente instituídas pela nossa história recente de dominação europeia, extermínio de índios e escravidão de negros. Quando essa “ordem” implícita é ameaçada, o conflito racial se mostra. Quando os privilégios historicamente construídos dos brancos são ameaçados pela presença negra nas universidades, emerge o racismo que estava velado.
Os anticotas também gostam de argumentar que conceder vagas para indivíduos que não tiram boas notas no vestibular é um risco para a qualidade do corpo discente das universidades. Mas a capacidade de se resolver a prova do vestibular não garante que o candidato terá condições ou vocação para seguir a carreira acadêmica. É notório que muitos universitários que passam no vestibular desistem em algum ponto da graduação. E importa salientar que a desistência entre os cotistas é menor do que entre os não-cotistas.
Ademais, tem sido demonstrado que, em média, o desempenho acadêmico de cotistas é equivalente ao dos não-cotistas. O que nos leva a questionar se o vestibular é realmente um meio absolutamente seguro de se averiguar quem tem condições de cursar bem uma faculdade. A vocação para a carreira universitária não se atesta pelo exame do vestibular, e penso que, mesmo se tivéssemos que insistir num sistema meritocrático, o vestibular deveria ser revisto ou substituído por outro meio.
Meritocracia
Da maneira que as coisas estão atualmente, o vestibular é uma espécie de loteria. Aqueles que têm a sorte de ter frequentado uma escola que os prepare para tirar uma boa nota são agraciados com uma vaga na universidade. Lembremos que até os cotistas precisam tirar uma nota mínima para passar, o que implica, inclusive, que todos os que entram na universidade estão num nível equivalente, não havendo diferença tão significativa entre os desempenhos de cotistas e não-cotistas.
O fato é que, uma vez que o vestibular não é um meio seguro para se averiguar a adequação dos candidatos à vida de pesquisas acadêmicas, ele não faz muito sentido enquanto instrumento meritocrático. A meritocracia do vestibular não tem nada a ver com a vocação acadêmica dos candidatos, e tem mais a ver com receber um ingresso para visitar um museu por ter sido bem-sucedido numa competição de xadrez.
As cotas raciais são uma proposta emergencial com o objetivo de atenuar os efeitos do racismo entranhado em nossa cultura. De fato, oportunizar a alguns negros (é bom que se note que, apesar de tudo, os beneficiados das cotas são uma minoria da população) a chance de sair das condições precárias em que viveram seus pais ajuda a tornar visível que a cor da pele não torna uma pessoa inepta. Mas ainda é necessário que essa política seja acompanhada de uma ostensiva reforma do ensino público, da erradicação das desigualdades sociais e trabalho infantil, além da implantação de projetos culturais de valorização da herança africana em nossa cultura material e imaterial e em nossa biologia.
Links
- Série Cotas Raciais
- Por que as cotas raciais deram certo no Brasil – IstoÉ
- “Desempenho do cotista é superior ao do não-cotista” – Pragmatismo Político
- Ipea: cotistas têm melhores notas em universidades – Universidade Federal de Campina Grande