Imagem dos relatos de viagem é retomada até hoje na visão sobre o Brasil e os brasileiros
Por Mariana Castro Alves
Uma terra de natureza exuberante e farta. Águas doces, flores e frutos de todo tipo, pássaros coloridos, clima temperado e um ambiente sempre agradável. As mesmas descrições retratadas no Jardim do Éden são encontradas em diversos textos deixados por aqueles que passaram ou viveram no primeiro século depois da Descoberta do Brasil, na “Índia Ocidental”, segundo o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Alípio de Sousa Filho. Até a nudez dos indígenas, ainda que com certa reprovação, fazia parte dos mitos paradisíacos que vinham desde a Idade Média e que se enriqueceram com a descoberta do chamado Novo Mundo: “seres que esperavam apenas a ‘palavra de Deus’ do colonizador para deixarem a condição de ‘almas perdidas’”.
Mas, ao habitar as novas terras, os primeiros colonizadores modificaram seu olhar e passaram a produzir relatos menos simpáticos. Sousa Filho conta que, em meio à paisagem de “bichos estranhos”, os corpos indígenas nus, por exemplo, deixaram de ser expressão de “inocência” e “pureza” para, rapidamente, passar à condição de objetos a se submeter ao uso de vestimentas, nem que fosse “a golpe de chicotes”, como escreveu o missionário francês Jean de Léry.
Baseado numa moral rígida, o sistema de dominação previa mudar os costumes da “gente selvagem”, como o nomadismo e o canibalismo relatados por Hans Staden em Duas Viagens ao Brasil, publicado em 1557. “Uma nova imagem do Brasil começou a se fazer não mais em termos de Jardim das Delícias, mas de Inferno”, conta o professor.
Entre o Paraíso, visto por Cristóvão Colombo, e o Inferno, habitado por criaturas cruéis e inumanas, desenhadas pelo sacerdote francês André Thevet, a imagem de um Brasil particular foi construída historicamente. Entre a simpatia e a promiscuidade e entre a civilização e a barbárie, o olhar dos viajantes estrangeiros dos séculos XVI ao XIX foi carregado pelo tempo, sendo parte da visão do país até hoje.
Visão do Paraíso?
Embora o Novo Mundo tenha sido pintado como o Éden no Descobrimento, “a associação entre o Paraíso e o Brasil não é tão forte quanto se apregoou”, explica o historiador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Franca, Jean Marcel Carvalho França. De acordo com ele, a exaltação do indígena se dá apenas no Romantismo, já no século XIX. “Ficou uma impressão de que sempre foi assim. Mas não foi”. De acordo com França, no século XVII, a visão do indígena era “muito ruim”.
Além disso, o historiador afirma que o pensador Sérgio Buarque de Holanda teria consagrado a concepção paradisíaca das novas terras. Mas, ao escrever “Visão do Paraíso”, em 1958, Holanda não teria analisado o Brasil. “Ele concentrou sua análise no século XVI e em alguns poucos autores que nunca passaram pela América portuguesa”, afirma.
Mestiçagem
Segundo França, as narrativas de viagem sobre o Brasil mostram uma natureza pródiga, mas o colono – negro, branco e mestiço – é visto como bastante degradado. A partir do século XVI, o indígena, agora pouco encontrado no litoral, praticamente desaparece da literatura de viagem. A descrição passa a se centrar na libertinagem do país e na sua grande mestiçagem, representada constantemente como responsável pelos males do Brasil.
Para Sousa Filho, nossas misturas sempre foram representadas pelos viajantes estrangeiros com desprezo. Nos relatos, a falta de ordem de pratos colocados à mesa é vista como atraso, assim como a hospitalidade e a má educação das mulheres, diferentes das europeias, discretas e reservadas. Thomas Ewbank (1792-1870), viajante inglês radicado nos Estados Unidos, em seu relato “Vida no Brasil”, escrito em 1846, ilustra como o brasileiro é concebido: “as cenas, as mais ridículas, têm lugar nas fontes. Gente tagarela (…) faz pensar numa pocilga em que porcos grunhem e em que se comprimem mutuamente, na angústia de morder cada um sua ração” [1].
Visão do outro
Para o historiador da Unesp, a visão que o brasileiro faz de si e a visão que o mundo tem do Brasil é formada pelo estrangeiro – não pelo colono, nem pelo português. Isso porque Portugal se isolou a partir de 1591, quando se proibiu receber estrangeiros nos portos brasileiros, e também porque Portugal não escreveu nem publicou relatos sobre o Brasil. “Portugal é absolutamente insignificante na divulgação do Novo Mundo”, diz França. Do pouco escrito em português, 90% tratam de religião e não de descrever o país, conforme o historiador.
Além disso, a imprensa na colônia era proibida. Assim, nem os portugueses nem os brasileiros participaram na produção de relatos e nas traduções sobre o país. “Afinal, um país iletrado como Portugal não ia produzir nenhuma Atenas”, compara França. Segundo o professor, a imprensa na colônia não é proibida para interditar o senso crítico do brasileiro. A ideia do conhecimento como um despertar só ocorreria com o Iluminismo, depois da Revolução Francesa. “Proibia-se a impressão no Brasil por um motivo muito simples: quebrariam todos os livreiros de Portugal. A indústria editorial de Portugal dependia muito da ajuda real porque era totalmente falida”.
Os franceses, os ingleses e os holandeses, explica França, foram os divulgadores do Novo Mundo, enquanto os alemães, em grande medida, foram os editores. Os holandeses atuaram como produtores, editores e tradutores – por exemplo, na produção de mapas ao longo do século XVII. “E não editavam somente em holandês, mas também em francês e muitas vezes em inglês”, diz. Isso tornou a visão do Brasil eminentemente estrangeira – algo ainda hoje prevalecente, para o professor.
Na bagagem
“A única coisa que a gente fez foi inverter os sinais. Onde o estrangeiro via um defeito de caráter, a gente tentava ver uma peculiaridade civilizacional”, analisa Jean Marcel França. Para ele, por exemplo, “o estrangeiro nos tinham, desde o século XVII e XVIII, como promíscuos. Hoje a gente procura mostrar que é um povo liberado. E não é verdade: as próprias leis mostram isso, porque são bastante restritivas das liberdades individuais do ponto de vista sexual. E a própria sociedade também. Nossa sociedade é pouco tolerante, mas ela gosta de se ver como ‘liberada’”.
Foram muitas as manifestações que trariam a concepção dos relatos de viagem. Jean Marcel cita romances como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, o discurso de Gilberto Freire, a Tropicália, as canções de Chico Buarque… “Ao ler o Manifesto Antropofágico do Oswald de Andrade, às vezes tenho a impressão de que se tratava de uma narrativa de viagem. Uma visão meio exótica do Brasil que ele tentou tomar como uma visão excêntrica. Eu digo: só seria passível de ser vendida para o mundo como excentricidade que deu certo, se a nossa civilização tivesse dado certo. E nossas desigualdades mostram que nós não demos tão certo assim.”
Para Sousa Filho, toda uma tradição teórica de interpretação da cultura brasileira condenou as nossas mestiçagens: de Capistrano de Abreu a Caio Prado Júnior, passando por Paulo Prado, Abelardo Romero, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. “Nossas mestiçagens são, por bom número de intelectuais, vistas como o fator que teria mergulhado a sociedade brasileira no dilema de construção de suas instituições, dividida que estaria entre o modelo de uma sociedade ‘racional, moderna, civilizada, séria’ e o modelo de nossas misturas ‘insensatas, arcaicas, grosseiras, irracionais, atrasadas’, um dilema do qual a sociedade brasileira ainda não teria saído”, afirma. Para ele, preconceitos foram trazidos com um fundo de racismo, mais ou menos revelado.
Representação do imaginário europeu
Os primeiros desenhos de índios, animais e florestas do Brasil foram feitos com base em relatos, conforme esclarece o professor do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UNB), Pedro de Andrade Alvim. Os primeiros artistas viajantes conhecidos só teriam começado a chegar às Américas nas expedições científicas do século XVIII.
Assim, o conhecimento sobre o Novo Mundo começou com a interpretação que o artista europeu dava às descrições dos viajantes, de acordo com fórmulas preestabelecidas, formadas a partir do Renascimento, de representação da figura humana e da paisagem, “um tipo de imagem da natureza que buscava os acidentes naturais pitorescos, com montanhas, rios, variações topográficas, e que podia guardar ainda elementos medievais”.
Para Sousa Filho, o colonizador expressou seu próprio imaginário nos relatos sobre o país e manifestou sua visão de justificar seu projeto de dominação. Ele ilustrou o fato de que boa parte das imagens é produzida por pinturas, gravuras e fantasias de pessoas que não estiveram aqui. “Sem nunca ter saído de Paris, o naturalista francês George Buffon escreve sobre a fauna, a flora e o homem da América, apontando sua inferioridade e degenerescência”, aponta Filho.
Para saber mais, assista ao documentário “Brasil no olhar dos viajantes ”, da TV Senado .
[1] EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1976, p. 156.