Estudantes universitários escrevem “cartas” contra o ensino de Marx e recusam-se a fazer qualquer trabalho na faculdade sobre este autor sob a justificativa de que não concordam com “doutrinação ideológica”. Desesperados por alguma atenção, pretensos intelectuais, como Olavo de Carvalho, Lobão e congêneres, alardeiam raivosamente contra Marx e o marxismo, acusando-os de serem a raiz de conspirações sinistras de tomada de poder, da implantação de ditaduras “bolivarianas” e da inversão de valores e costumes em curso na atualidade. Outros tantos criam fantasias de universidades e Centro de Ciências Humanas completamente dominadas por marxistas – professores doutrinadores e maléficos que ganham as mentes e os corações dos estudantes para o culto ao velho barbudo. Recentemente, um jornalista da Revista Veja se exasperou com a presença do filósofo de Treves numa questão do ENEM 2013. Por que Marx incomoda tanto?
Em meio a tanta irracionalidade, intolerância e ignorância, podemos, contudo, extrair uma conclusão razoável: os conservadores continuam a temer Karl Marx. Ora, mas não são igualmente eles que não cansam de apregoar aos quatro cantos a sua “morte”, sua irrelevância, seu fracasso, sua superação histórica? Não são eles que afirmam que Marx malogrou em todos os sentidos de sua obra? Que ele fracassou como economista, como filósofo e como pensador político de um projeto revolucionário? Afinal, assim nos dizem, a experiência socialista não passou de uma monstruosidade burocrática e autoritária e que, comprovando a verdade histórica irrefutável, ruiu diante da superioridade da economia de mercado e da democracia liberal, como vaticinou o historiador Francis Fukuyama. Diante de tantas “evidências históricas, morais e intelectuais”, por que persiste o medo ao Karl Marx? Por que a reiterada desqualificação e tentativa de censura e silenciamento de sua obra e pensamento?
Intrigante contradição. Porém, Marx é um pensador das contradições, no sentido de que buscou enfrentá-las como reveladoras da dinâmica do mundo real, o contrário, portanto, do pensamento conservador, que as toma como falha moral ou indicativo de erro e falsidade.
Karl Marx é perigoso. E, eles sabem disso. Perigoso para os seus privilégios e seus mitos. Primeiro, porque, para Marx, a compreensão do mundo, da história e do presente não é alcançada por um ponto de vista capaz de conceber o “desenvolvimento geral do espírito humano”, mas por uma perspectiva que se lance até as relações materiais tecidas pelos homens entre si e com a natureza, que ilumine as lutas entre as classes, os golpes, as artimanhas, as peças e ardis ao longo da história. Segundo, porque Marx não parou aí, na compreensão. Ele ousou concretizar, no plano intelectual e material, a fórmula atemorizante de que o conhecimento e as ideias podem servir para transformar o mundo, e não somente para compreendê-lo.
Marx é perigoso porque ousou convencer os dominados que a emancipação e sua redenção dependiam unicamente deles, de sua ação e organização, e não de Deus, da Igreja, do trabalho árduo, do Direito ou do Estado burguês. Mostrou-lhes que a injustiça social, a indigência, o despotismo e a degradação da vida não eram naturais e eternas, mas produto de uma história, de relações sociais concretas e de uma formação social particular e modificável. Marx queria que os oprimidos de sua época sentissem e se rebelassem contra a opressão social, econômica e política. Opressão, não somente injusta mas desumanizadora.
O filósofo do Manifesto Comunista desmontou a ideologia e a percepção de mundo burguesas, e, com tal gesto, abalou a justificação e legitimação da ordem das coisas, do status quo responsável pela manutenção da dominação e dos privilégios das classes dominantes de então. Marx revelou o que se gostaria de manter opaco e escondido, como um segredo muito bem guardado, na sociedade burguesa e no sistema capitalista.
Marx cometeu um pecado imperdoável contra as classes dominantes: ele demoliu as autoilusões capitalistas e burguesas, por isso ele assusta tanto os conservadores. A fábula romântica e asséptica acerca das origens do capitalismo é duramente confrontada com uma história de violências e arbitrariedades para privar os trabalhadores dos seus meios de produção e convertê-los em “vendedores de si mesmos”, uma história de expulsões, assassinatos e expropriações inscrita nos “anais da humanidade com traços de sangue e fogo”. A libertação dos jugos medievais, saudada como a liberdade do trabalhador não passa, com efeito, de uma liberdade para vender a sua força de trabalho em troca de um salário ou morrer de fome.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma emancipação restritamente formal, política, individualista, e não humana e verdadeiramente universal. O salário, como justa retribuição pelo esforço e o talento, uma troca equivalente entre contratante e contratado? Não, apenas mais um meio para fazer com que o trabalhador disponha de um valor para reproduzir a si mesmo e sua família e, assim, possa se manter como força e instrumento útil e disponível no mercado; um valor que esconde outro valor, uma relação social que mascara a exploração, a acumulação crescente, a submissão à mais-valia, a coisificação.
A magia das mercadorias? É mantida graças às condições de trabalho capitalistas que bloqueiam e distorcem a percepção dos produtores acerca das relações sociais efetivas sem as quais as “coisas” não existiriam nem se apresentariam no mercado como que se tivessem chegado lá sobre os seus próprios pés. As crises econômicas? Sustentou Marx, não são anomalias do capitalismo ou equívocos individuais de empresários e investidores. Não. São o produto da própria dinâmica capitalista e de sua exigência de acumulação permanente.
Marx assusta porque sua obra e seus escritos provocaram os maiores estragos já produzidos nas ideologias das classes dominantes e nas estruturas sociais e políticas de seus privilégios e poder. O filósofo alemão desmistificou a sociedade capitalista. Ele rasgou o véu das mistificações opacas, interessadas e politicamente úteis às classes dominantes.
O pavor continua ainda nos dias atuais porque o legado de Marx continua vivo e fértil, capaz de inspirar novos intelectuais, profissionais, militantes e movimentos sociais para laborar em favor de mudanças concretas e profundas, em favor de um outro mundo. Por isso, todo o esforço, por vezes sistemático e por vezes delirante, da parte dos conservadores para prender Marx e seus escritos no mofo das estantes esquecidas e deixa-los perpetuamente para a “crítica roedora dos ratos”.
Marx assusta porque sua leitura e conhecimento ainda são capazes de produzir fortes e intensos abalos nos fundamentos da ordem social e seu sistema de dominação vigente. Os conservadores tremem de pavor com a possibilidade de, nos dias que correm, os dominados e subalternos de todo o mundo possam ouvir a pergunta mais impactante feita por Marx: “a atmosfera sob a qual vivemos pesa várias toneladas sobre cada um de nós — mas vocês o sentem?”. Perigo.