Por Thadeu de Sousa Brandão
Pensar uma determinada época, principalmente na medida em que essa é vivenciada não é tarefa fácil. Principalmente quando certas mudanças nos transportam a um ambiente de incertezas. Isso, em um mundo onde a incerteza é regra, torna a compreensão da realidade ainda mais problemática. O olhar sobre esses “tempos interessantes”, como diria o grande Hobsbawm, torna-se tarefa premente.
As manifestações que vêm tomando conta do Brasil, nossa “Primavera dos Povos”, dirá algum viciado em comparações históricas, têm tomado um contorno cada vez mais impositivo, polifônico e quiçá, violento. Numa era de “incerteza de status”, tomando o termo de Nobert Elias, temos um amplo grupo social heterogêneo e polifônico a exigir espaço e a transgredir violentamente contra a ordem. Calma, isso é o que aparenta ser. Sem uma pesquisa séria, qualitativa e aprofundada, incorremos no espaço da especulação. Eis o nó górdio.
Vivenciamos uma mudança de códigos comportamentais. Como mostrou Elias, “mudanças em códigos de comportamento (…) estão inseparavelmente entretecidas com maciças mudanças estruturais nas sociedades” (1997, p. 38), ou seja, vivenciamos uma profunda mudança em nossa sociedade, que aciona, de certa maneira, essas mudanças no sistema de compreensão e vivência dos códigos dessa parcela da sociedade.
O que tivemos nos últimos anos? Um aprofundamento da urbanização no Brasil, com o encaixe cada vez maior do país no capitalismo globalizado, excludente e racionalizador. Olhe que, quando falo em exclusão, não refiro-me apenas à exclusão econômica, mas a um processo de individualização que agudiza o individualismo e o isolamento das pessoas. Afora a desigualdade ainda não solucionada, vivenciamos uma urbanidade sem planejamento eficaz, onde o deslocamento é conflituoso e onde o futuro é incerto. Para o jovem que adentra neste mundo de cada vez mais, “incerteza de status”, este é um espaço de perigo onde ser reconhecido, de alguma forma, torna-se uma verdadeira bandeira de luta.
No decorrer de seu desenvolvimento, as sociedades constroem um certo mecanismo de autocoação interna, que Elias denominou de “processo civilizador”. Assim, estas coações internas tornam-se mais fortes do que as coações externas. Explicando: mais do que a força do Estado ou de outros mecanismos racionais-jurídicos de uso da força, as pessoas seguem determinado padrão de conduta, “educado”, “resignado”, “civilizado”, porque os mecanismos internos (psicológicos, culturais e sociais) funcionam adequadamente. Porém, onde as diferenças sociais ainda são consideráveis, onde as “clivagens” sociais ainda permanecem bastante presentes, certos mecanismos de contenção tornam-se mais significativos.
Assim,
“(…) a salvaguarda dos padrões mais civilizados de comportamento e sentimento em sociedade depende de condições específicas. Uma destas é o exercício de autodisciplina, relativamente estável, por cada pessoa. Isto, por sua vez, está vinculado a estruturas sociais específicas. Estas incluem o fornecimento de bens – ou seja, a manutenção do habitual padrão de vida. Incluem também, sobretudo, a resolução pacífica de conflitos intra-estatais – isto é, a pacificação social. Mas a pacificação interna de uma sociedade também está sempre correndo perigo. Ela é ameaçada por conflitos tantos sociais quanto pessoais, que são atributos normais da vida em comunidade humana – os próprios conflitos que as instituições pacificadoras estão interessadas em dominar. É com esse aspecto de um processo civilizador, com a tensão entre pacificação e violência, que este ensaio se preocupa” (ELIAS, 1997, p. 161).
Em uma forma de organização social, como a que vivemos, onde os governantes possuem à sua disposição determinados grupos de especialistas que estão autorizados a usar a força física em emergências e também a impedir outros cidadãos de fazerem o mesmo, somente esses especialistas podem fazê-lo. Mais do que uma condição necessária à pacificação interna, temos mecanismos de controles externos, principalmente quando o “processo civilizador” falha. Fomos socializados para considerar a violência interna como um mal absoluto, devendo ser rechaçado com toda a força possível. Mas, ao mesmo tempo, nos vangloriamos da violência externa, quando entramos em guerra e construímos nossos heróis em torno dela.
O que leva então ao uso da violência por jovens, muitos de classe média, “civilizados”, a pensarem a violência como instrumento de ação política? Nobert Elias nos dá uma perspectiva de pensar o problema, a partir da Alemanha pós 1968, onde ele aponta que
“para os jovens intelectuais de classe média, provenientes de famílias muito pacificadas, em que é tabu o uso de violência nas relações de autoridade entre pais e filhos, na luta pelo poder entre gerações, a transição para atos de violência, assaltos a bancos, incêndios premeditados e assassinatos, como meios de travar batalhas políticas, é muito mais difícil do que para pessoas oriundas daquelas famílias da classe trabalhadora, em que as ameaças físicas contra os mais fracos pelos mais fortes estão da ordem do dia. Sem dúvida, no caso dessas pessoas de classe média, o uso de violência na luta política é menos espontâneo; transgredir tabus contra o uso de violência – tanto o tabu da coação externa social quanto o tabu da autocoação pessoal – exige um esforço muito maior. A necessidade de justificação intelectual, de legitimação através da reflexão, é um sinal disso” (ELIAS, 1997, p. 212).
Elias compreende que somente uma sensação de pressão muito forte, uma sensação de coações terrivelmente opressivas, que facilita essa transgressão e precipitaria a decisão final. Uma contradição: por que os movimentos de protesto e a declaração de guerra dos jovens burgueses na Alemanha daquele momento histórico (como o Brasil da Era PT de hoje?) contra essas injustiças ganharam muito mais força precisamente quando o padrão econômico de vida dos menos poderosos tinha alcançado um nível mais alto do que nunca?
“Esse paradoxo superficial só pode ser explicado se o examinarmos de um ângulo ligeiramente diferente do que é costume analisá-lo: ou seja, se aceitarmos seriamente o sentimento de opressão e coação social que as pessoas em questão articulam, e investigarmos as bases de tal sentimento – sem que, entretanto, nos demos por satisfeitos com as próprias explicações delas para esses coações como sendo de caráter predominantemente econômico” (ELIAS, 1997, p. 213).
Uma possível resposta? “Os grupos humanos revoltam-se usualmente contra o que experimentam como opressivo, não quando a opressão está no seu auge, mas precisamente quando começa a enfraquecer” (ELIAS, 1997, p. 213). Se houve uma certa melhoria em determinados padrões de vida para esses jovens, ao mesmo tempo, houve também uma maior independência dos jovens, que assim, emancipados de seus pais, também os expôs mais cedo às coerções anônimas da burocracia do Estado e, sob certos aspectos, do mercado de trabalho. Uma nova dinâmica social significativa surge, onde certa disposição de grupos de jovens de classe média para aceitar um conjunto de ensinamentos que colocam no centro das atenções o problema da opressão social de classes específicas por outras, do domínio de forças sociais anônimas e, sobretudo, os problemas da desigualdade e das injustiças sociais.
Assim, mais do que coerções econômicas, estamos diante de uma coerção fundamental que é a busca de significado, a busca de um propósito que favoreça a plena realização pessoal e possa ser vivenciado como significativo. Busca por reconhecimento, pensando um pouco como Honneth, onde o nosso sistema político-partidário não consegue responder. Afinal, nossos partidos são verdadeiras gerontocracias oligárquicas, onde a perspectiva de participação de poder, de fato, é muito baixa.
Outro ponto a ser pensado é que a violência é um elemento gradiente presente em nossa sociedade. Matamos muito, seja com armas ou automóveis. Nosso sistema estatal é violento e, ainda mais, temos um passado onde a violência foi resposta para vários problemas, políticos e sociais.
Pensar a questão é fundamental. Espero ter apenas sinalizado com alguns insigths, nada mais. O papel da Universidade é sinalizar uma problematização concreta, sem devaneios e senso comum. Para isso, já temos a imprensa e as redes sociais.
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CITAÇÕES:
ELIAS, Nobert. Os Alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Editado por Michael Schröter. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica de Andrea Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
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PUBLICAÇÃO ORIGINAL:
BRANDÃO, Thadeu de Sousa. Os Protestos Violentos no Brasil e algumas lições de Nobert Elias. Blog do GEDEV – Grupo de Estudos Desenvolvimento e Violência – UFERSA. Disponível em: < http://bit.ly/1aEG6QK >. Publicado em: 29 out. 2013.
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SOBRE O AUTOR:
Thadeu de Sousa Brandão é Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Professor de Sociologia da UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido) e Consultor de Segurança Pública da OAB/RN-Mossoró
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