Por Thadeu de Sousa Brandão
(Publicado orinalmente no Blog do GEDEV)
Nas ciências sociais, a preocupação analítica de dar conta dos relatos e da história oral e de vida de uma dada comunidade ou grupo social passa pela questão da identidade social. Tal identificação social depende do grau de socialização a que o indivíduo foi exposto e ao grau de conhecimento a que teve acesso. Quanto mais completa é a socialização, mais integrado está o indivíduo ao grupo social e mais solidário ele estará com os demais indivíduos e com as representações que dividem.
As estruturas sociais históricas particulares engendram tipos de identidade que são reconhecíveis em casos individuais. Assim, os tipos de identidade podem ser observados na vida cotidiana e também na extra-cotidiana. Isto posto, a identidade é fruto de uma dialética entre o indivíduo e seu meio social, sendo influenciada por toda a totalidade do social (religioso, político, econômico etc.).
As instituições sociais, os papéis sociais, a tradição, e as formas de legitimação social são o substrato que constroem a identidade. Cada um, de sua forma, ajuda a caracterizar a identidade coletiva, que será mais ou menos coesa, dependendo da força com que as representações sociais estejam presentes.
Neste sentido, uma ênfase na biografia, em sua trajetória e experiência concreta, faz sentido porque a biografia mostra o que é potencialmente possível em dada sociedade ou grupo. Acredita-se que as biografias conseguem ilustrar formas típicas de comportamento e concentram as características do grupo; mesmo as desviantes mostram o que é estrutural e estatisticamente próprio ao grupo.
Daí a importância dos velhos, dos idosos, que, de formas distintas, nomeiam tradições a que estariam ligados e, desse modo, distinguem e especificam suas participações na dinâmica geracional e na transmissão cultural. Suas inserções particulares no tempo histórico.
Nesta perspectiva, o resgate da memória familiar, mesmo que fluido, pode suscitar alguns insights que permitem pensar a “vingança” como um elemento gerador de violência que, longe de estar apenas geograficamente localizado no sertão, atravessou o cotidiano do Nordeste brasileiro como um todo.
Minha família paterna tem um caso típico e exemplar: o assassinato de meu bisavô, pai de meu avô paterno, Agenor Mendes de Castilho Brandão, assassinado em 1951 em Ceará-Mirim (região canavieira), RN. Então chefe da estação ferroviária daquela localidade, o patriarca foi morto com golpes de faca peixeira na Mercearia de Seu Cirilo. Socorrido às pressas ao Hospital de Natal, não conseguiu sobreviver, falecendo na capital. Enterrado no Cemitério de Ceará-Mirim, ao lado da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, seu túmulo até hoje é objeto de visitação por parte de seus descendentes.
O assassino, confesso e publicamente indicado, cujo nome não consegui recuperar apenas pelas memórias de meus familiares, era um funcionário da Rede Ferroviária que foi motivado por uma suspensão trabalhista. O mesmo, por diversas vezes, havia chegado embriagado ao trabalho, tendo sido objeto de várias repreensões anteriores.
O crime abalou a pacata cidade assim como a família. Minha bisavó, figura pequena e de olhos azuis, forte e apreciadora de charutos, em sua cadeira de balanço, branca e lívida de raiva, exigiu de seus filhos, Cleanto, Cláudio, Danilo, Renar e Décio (este meu avô), a vingança lavadora da honra contra o “cabra” que havia matado seu marido.
A vingança ocorreria no dia em que o assassino fosse a julgamento. Sendo levado a pé da cadeia ao fórum da cidade, houve a oportunidade da execução da vingança. Meu tio avô, Cláudio de Castilho Brandão deveria ser o executor da vendetta. Neste aspecto, as memórias familiares são confusas, pois há uma certa dúvida se os policiais que conduziam o assassino, foram ou não subornados para facilitar a ação. Tio Cláudio, munido de uma Winchester 22, atirou contra o elemento, na altura do Bar de Cleto, acertando-o no braço, errando o tiro fatal.
Vivo, o assassino foi condenado, cumprindo pena e sendo solto posteriormente. Cantava sempre a música “Vingança” de Lupicínio Rodrigues, canção que meu avô, por isso mesmo, tinha profunda aversão. Na verdade, a morte de meu bisavô fora tão traumática que, tanto a geração de meu avô como a de meu pai, quase nunca tocavam neste assunto. Sou portanto, o primeiro a resgatar esses fatos.
Se o elemento de vingança é característico de espaços sociais marcados pela pretensa ausência do Estado, sendo uso particular da força e da violência, a quebra do monopólio desta indica apenas uma certa flexibilidade das ações de justiça racionais-legais ou burocráticas. Pois, pensando no elemento de status e de tradição, certas famílias e grupos sociais se achavam no direito de executá-las.
Há 62 anos isso ocorreu em Ceará-Mirim, hoje Grande Natal. Ainda ocorre aos borbotões em nosso estado e em várias partes do Brasil.
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Publicado Originalmente em:
BRANDÃO, Thadeu de Sousa. Memórias familiares de um caso de vingança. Blog do GEDEV – Grupo de Estudos Desenvolvimento e Violência – UFERSA. Disponível em: < http://bit.ly/1eJ2lpv >. Publicado em: 23 out. 2013.
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SOBRE O AUTOR:
Thadeu de Sousa Brandão é Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Professor de Sociologia da UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido) e Consultor de Segurança Pública da OAB/RN-Mossoró