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O julgamento da New Hit e a permissividade do Judiciário

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Por Nádia Lapa

Publicado na Carta Capital

nweEm 26 de agosto de 2012, duas adolescentes de 16 anos tiveram a oportunidade de chegar perto dos seus ídolos, integrantes de uma banda de axé e pagode, a New Hit, da Bahia. Elas não se conheciam. Posso imaginar a alegria das garotas, moradoras de Ruy Barbosa, a 300 quilômetros de Salvador: iam tirar fotos, postar no Facebook, guardar o autógrafo com todo o cuidado do mundo.

 Poucos minutos depois, porém, o sonho delas se transformou em algo muito pior que um pesadelo. Ambas foram obrigadas a irem para o fundo do ônibus da banda, onde foram brutalmente estupradas por oito homens, com mais dois dando cobertura ao crime. Oito homens. Oito. Que as forçaram a praticar sexo oral, as penetraram, ejacularam em cima delas, xingaram, bateram. Oito homens.

Ambas registraram a ocorrência e os agressores foram presos (eles alegam que foi consensual). Ficaram 38 dias na cadeia. Ao saírem, continuavam recebendo o apoio de fãs e alguns patrocinadores. Resolveram fazer uma música para “explicar” o acontecido – e intimidar as vítimas, àquela altura sofrendo ameaças dos partidários dos acusados.

Não brinque com a verdade.
Não desrespeite a humanidade
Não tenha maldade no seu coração
Quem não enfrenta dificuldade?

Eu cresci pra realidade
Obstáculos fazem parte da transformação
É fã se lamentando, é mãe chorando

Família gritando e se humilhando
À toa, na boa, à toa
Mas a justiça de Deus nunca falhará
Ser acusado pelo delegado, e injustiçado
Mas Jesus liberta A favela pega

(o grifo é meu. o nome original da música é… A favela pega.)

A história parece nojenta demais até aqui? Eu os poupei de detalhes, como a descrição detalhada do crime, repetida pelas vítimas em juízo, na primeira vez que os acusados sentaram no banco dos réus, em fevereiro de 2013, seis meses após o crime. À ocasião, o julgamento foi adiado porque a defesa convocou dezenas de testemunhas (que não estavam no ônibus, diga-se) – nem todas conseguiram comparecer. Um subterfúgio para adiar o julgamento.

Conseguiram. A audiência de instrução e julgamento foi remarcada para ontem, 3 de setembro, na mesma cidade em que o crime ocorreu, Ruy Barbosa. Logo de início quiseram adiar novamente, sob a alegação de que o advogado do vocalista da banda, Eduardo Martins, estava doente. A juíza não aceitou, e sugeriu que o réu fosse representado por um defensor. Durante todo o dia, os réus depuseram, e o laudo científico foi apresentado: o sêmen de seis dos integrantes foi encontrado na roupa das garotas.

No fim do dia, eles finalmente conseguiram o que queriam: novo adiamento, dessa vez por dizerem que não se sentiam seguros na cidade. Durante o almoço, eles foram escrachados verbalmente por mulheres que os viram em um restaurante. Essa é a insegurança que eles sentiram. Não, não havia oito homens em cima deles, obrigando-os a manter relações sexuais.

É bastante assustador que seres acusados (com provas) de um crime bárbaro como o estupro, com o agravante de ser um estupro grupal, se sintam inseguros. Eles se sentem ameaçados, mas durante UM ANO eles continuaram fazendo shows, recebendo garotas para tirar fotos, lançando novo CD, gravando vídeos, interagindo socialmente com mulheres que poderiam ter o mesmo destino das duas garotas de Ruy Barbosa.

Enquanto isso, as duas sobreviventes tiveram que entrar em um programa de proteção, mudar de cidade, escola, nome. Tiveram que se afastar dos amigos, da família. Elas viraram as presas, as encarceradas, enquanto eles viviam por aí, numa boa, ganhando dinheiro e cantando a música que as ameaça.

Entendo que existe o devido processo legal, o contraditório, e que sequer a imprensa pode chamá-los de estupradores antes da sentença transitar em julgado. Mas a imprensa sequer falou a respeito. À exceção do R7, nenhum veículo grande noticiou a retomada do julgamento, que agora vai acontecer nos próximos dias 17, 18 e 19 (provavelmente os réus não esperavam que o adiamento seria de apenas duas semanas).

O Núcleo Negra Zeferina, da Marcha Mundial das Mulheres, está em Ruy Barbosa. As militantes feministas estiveram lá em fevereiro, estão agora, estarão novamente na retomada da audiência. Maíra Guedes, uma das militantes da Marcha, me informou que elas permanecem com a agenda de trabalho prevista, com discussões em espaços públicos de Ruy Barbosa sobre violência sexual, patriarcado, entre outros temas feministas.

“Somente 2% dos agressores sexuais vão presos. Temos que denunciar a permissividade do judiciário e a impunidade”, diz Maíra. Mais de um ano depois do crime, os acusados permanecem em liberdade, sem nem mesmo termos uma sentença a respeito do caso. Depois da decisão monocrática de primeiro grau, ainda haverá espaço para recursos e mais recursos. Enquanto isso, possivelmente os integrantes da New Hit continuarão fazendo shows. Às vítimas, fica a dor, o trauma, o estigma, o medo.