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A periferia não é aqui!

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Por Caio Cézar Gabriel

Historiador e Mestre em Estudos Urbanos e Regionais (UFRN)
Graduando em Direito (UERN)
ccges@hotmail.com

periferia_okO titulo do texto pode ser um tanto redundante, ou até mesmo pode está fora da órbita de seu pleno sentido, mas não é, sendo ele verdadeiramente proposital. Quando afirmo que a “a periferia não é aqui”, não nos remetemos ao conceito de periferia ao estrito significado de espaço urbano, mas sim na ideia de que possamos a enxergar como o local repleto de simbologias sociais e práticas cotidianas próprias, que muitas vezes chega a se diferenciar de espaços distintos da cidade, não é a toa que quando os rituais da periferia chegam ao “asfalto” (não necessariamente de um morro para a cidade baixa), vemos o propalar de um pânico com teor moralista, ou presenciamos a reprovação da classe média a determinada prática, basta atentar para as letras do funk, estilo musical germinado nos berços da pobreza urbana, que tem suas origens ainda lá nos guetos negros das grandes metrópoles norte-americanos da década de 1960 (alguns historiadores da música divergem quanto a cronologia de sua origem), onde não sei se é salutar realizar uma dose comparativa entre o estilo dançante americano com o funk nascido nos morros cariocas, mais uma coisa é certa: os dois além da pitada de erotização em suas letras e danças, abordam também questões mais polêmicas, como violência, desigualdade e preconceito, e para falar a verdade, o funk ainda é visto como imoral não pela sua forte carga denunciativa das diversas injustiças sociais sofridas pelos moradores dos bolsões de pobreza, mas sim pela constante presença do fator sexualidade em suas melodias, e daqui acolá não é estranho escutarmos “isso lá é letra de música?”

Porém, o sentido desse breve texto não polemizar sobre estilos musicais também periféricos, pois o funk foi só um modelo lúdico para demonstrarmos como se cria essas tensões cotidianas entre “Periferia” e a “Cidade Legal”, conceitos estes muito utilizados pelos pensadores, ou planejadores, da urbes. Na verdade, a provocação do titulo surgiu de um fato inusitado que vivenciei hoje ao final da tarde.

Como de costume, sempre nos curtos espaços de tempo que tenho entre trabalho e estudo, gosto de pegar minha bicicleta e me aventurar em uma boa pedalada em meio a essa insana selva de pedra. Pois bem, quando eu estava a me preparar para sair de casa, uma vizinha me abordou e perguntou qual seria o meu itinerário, e naturalmente respondi: “Ponte Newton Navarro, Praia do Meio, Rocas, parte de Mãe Luiza e depois retorno para casa”, que só para esclarecer, resido na Zona Norte de Natal há muitos anos. Além da feição de consternação, escutei da moradora o seguinte: “você está ficando doido? Ir para esses lugares? Você tem muita coragem, está pedindo para ser assaltado”. Instantaneamente, repliquei: “Oras, e não temos essas mesmas questões por aqui? Assaltos, roubos, homicídios, isso não é inerente a toda a cidade?”. Sarcasticamente, a colega dispara: “Aqui não é periferia meu filho”!

Não demorei a me situar sobre a real intenção informativa da vizinha, e logo vi que o receio dela não era pelo perigo de se pedalar em meio ao trânsito violento, das ruas esburacadas, ou da epidêmica onda de furtos e roubos em toda a Natal, mas sim pelo simples fato de que o passeio de bike passaria pelos bairros que tradicionalmente são vistos, tratados, abordados e desenhados como periferias urbanas. Ainda assim, não enxerguei a relação entre o medo dela e a sua construção imagética do que viesse a ser uma periferia.

A priori, as ideias ficaram confusas quando não vislumbrei o real tom do discurso da moradora, pois a uma primeira vista, me fugiu a capacidade de compreender aquele receio que ficou evidente quando escutei as palavras “assalto” e “periferia” em meio ao papo, uma vez que a Zona Norte, ou como bem asseverava os mais antigos moradores da cidade, o “outro lado do rio”, também não seria uma periferia? Pois é, para muitos não!

A recente explosão comercial, alicerçada a forte expansão imobiliária (especialmente pelos condomínios verticais) que a região Norte da cidade vem vivenciando, pelo menos na ultima década, talvez esteja embutida no discurso “imaculador” do espaço urbano, ou seja, quando as moradias insalubres, o conjuntos habitacionais e os loteamentos cedem lugares aos shoppings centeres, as lojas de grifes e as moradias de altos muros com cercas elétricas, a sensação de que o espaço está longe de ser caracterizado como um âmbito de pobreza, violência e desigualdade, se torna parte do processo de formação de uma identidade bairrista, porém, muito mais cruel e trágico no que tange a essa falsa sensação, pois como bem falava o professor Alexsandro Ferreira, essas imitações das main streets dos bairros de bacanas apenas suscitam um falso sentimento de progresso e conquistas de direitos, onde na verdade a desigualdade e seus reflexos, a questão ambiental e o truncamento da infraestrutura urbana ainda são uma constante apesar das aparentes mudanças, em suma, é lamentável porque se imita um padrão de vida da classe média.

Além de tudo isso, podemos perceber que em meio a essa narrativa da moradora, uma outra questão, um tanto mais delicada, não passou despercebida: a questão dos estigmas embasada no pilar da questão socioespacial. As mudanças ocorridas nesses novos espaços de consumo acabam que se tornando um elemento fundamental para a fragmentação das lutas e identidades sociais locais (não necessariamente do mesmo bairro ou da mesma região, mas do morador dos espaços urbanos pobres como um todo), e o reflexo disso fica transparecido no medo do “outro”, do “vizinho”, da “outra periferia” a partir da estigmatização do pobre pelo pobre, que o condena (um ao outro) a condição de perigo social eminente baseando-se na reprodução distorcida dos parâmetros aceitáveis da nossa classe média, pois aqui temos shoppings, lojas e serviços, portanto, “aqui não é periferia meu filho”!