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A greve dos professores e o direito à preguiça

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Por Diego Fernandes

(Professor de História e Mestrando em História – UFRN)

Nas últimas semanas, no estado do Rio Grande do Norte, a categoria dos professores da Educação Pública entraram em greve. Assim como os médicos, policiais civis e funcionários do ITEP, os docentes ligados ao funcionalismo público estadual reivindicam melhorias substanciais e estruturais na educação pública. Foi contra a insegurança reinante em muitos estabelecimentos de ensino, contra a desvalorização do professor, contra o corte do transporte escolar, contra a falta de infra-estrutura da esmagadora maioria das escolas e uma série de outros descalabros, os quais tornam extremamente penoso o ato de ensinar e de aprender, que tal classe profissional decidiu paralisar as aulas, iniciando assim o movimento de greve. Contudo, além do Estado, enquanto instituição, um outro alvo de ataque dos grevistas tem aparecido em suas falas e ações.

Trata-se da figura do professor-turista, isto é, daquele professor que fica em casa, que não participa regularmente das assembleias, que não vincula-se ao Sindicato (SINTE) e que não vai para às ruas protestar. Contra essa figura, bolou-se o criativo e chamativo lema “greve não é férias, saia de casa já”. Com tal frase de efeito, visa-se tirar o docente turista de sua suposta apatia e paralisia política. Na visão de muitos grevistas, sobretudo das lideranças sindicais, o professor que fica em casa, só acompanhando as notícias do movimento pela mídia e pelo Facebook, realiza um verdadeiro desserviço à causa. Tal indivíduo seria não só um acomodado, como seria também um alienado, um profissional que não teria consciência de classe, alguém que teria dificuldade para se enxergar enquanto membro de uma coletividade profissional. Estas e outras pechas pesariam sobre o professor-turista, homem ou mulher que se valeria da paralisação para tirar férias, descansar ou simplesmente ficar em casa. Para este, a greve seria como que uma pausa, um momento de relaxamento da enfadonha e desgastante rotina escolar.  Tal é a imagem construída.

Essa representação sobre os professores que não participariam “efetivamente” do movimento grevista não seria uma caricatura radical e generalista? Será que os grevistas, aqueles que militam dia e noite em pró da educação pública no RN, no afã de fortalecer o movimento, não estariam sendo duros demais com aqueles que optam por “ficar em casa”? De casa ou do apartamento não se poderia fazer política? Seria a rua e as assembleias as únicas instancias espaciais da luta política? Não há outras possibilidades?

220px-Lagargue_1871No ano de 1880, em um contexto igualmente de agitação política e de greve social, no qual os operários rejeitavam a jornada diária de trabalho de 16 horas, um jornalista francês ousou pensar e propor novas formas de fazer política. Seu nome era Paul Lafargue, homem que entrou para a história por ter escrito um pequeno panfleto publicado no jornal L’Égalité, no qual defendia o “direito a preguiça”. Este foi o título de seu curto, porém não menos agressivo, panfleto. Genro de Karl Marx e adepto do Socialismo, Lafargue conhecia bem as estratégias proletárias para reivindicar melhorias.

A paralisação do trabalho, a quebra de máquinas, as sabotagens nas fábricas, a pressão contra o patrão etc. pareciam enfastiar seu espírito. Diante disso, Paul Lafargue resolveu sugerir o direito a preguiça, o direito de ficar em casa, o cultivo do ócio como arma política. “Operários, ficai-vos em casa!”, bradou corajosamente o francês, para o repúdio e incompreensão de muitos lideres proletários. Na sociedade europeia de fins do século XIX, nada mais antiburguês e anticapitalista do que ficar no espaço doméstico, do que fazer de sua residência ou de seu quarto o seu principal espaço, o seu único recanto da semana. A preguiça, um dos principais pecados capitais, recebia no Oitocentos ataques não só da Igreja cristã e protestante como também de vários grupos sociais, pois o trabalho era encarado como uma atividade inerente ao homem, a qual todos deveriam se submeter. Paul Lafargue tentava, assim, desestabilizar uma norma social essencial para a sociedade burguesa europeia de sua época.

Mas o que é que isso tem a ver com a greve dos professores do RN?! Poderia me perguntar chateadamente e confusamente um grevista. Respondo pacientemente: ficar em casa nem sempre é sinal de alienação, de acomodatismo, de passividade, de falta de consciência política, como aparentar crer muitos líderes do movimento. Na verdade, quem não sai de sua residência para se dirigir às assembleias e aos atos públicos também pode estar participando do movimento, pelo simples fato de não se estar indo trabalhar, pela obviedade de se estar em casa e não na escola, ministrando aulas. O professor que fica em seu domicílio pode também passar o seguinte recado para o Estado: “não vou trabalhar, sob estas condições me recuso a trabalhar”. O gesto de cruzar os braços e ficar no lar poder ser tão político quanto o braço que se ergue ao alto e a boca que grita e xinga raivosamente na praça pública. Por mais que o movimento grevista deixe de se fortalecer como querem seus líderes, não se está sendo apolítico quando se decide ficar em casa. Não é tão somente das ruas que as massas podem comunicar ou externar suas insatisfações. Da casa também se pode ouvir ruídos, gritos que escandalizam e amedrontam.

Desse modo, no discurso de muitos grevistas existe um dualismo simplista entre a rua e a casa, a praça e o quarto. A primeira instância espacial seria a esfera da ação, da liberdade, da reflexividade, da solidariedade, ao passo que a esfera doméstica seria o reduto da paralisia, da acomodação, da inação, da alienação política, do egoísmo. A rua seria a esfera pública, local por excelência da práxis social, das reivindicações, e a casa seria o mundo privado, individual, reino da alienação, da não consciência social. Assim, para o movimento e boa parte de seus adeptos, quem estar no espaço público está na luta, no front de batalha, ao contrário de quem opta por ficar em casa.

Embora não seja meu objetivo discutir as maneiras – digamos assim – domésticas de participar do movimento ora em tela, poderíamos apontar as seguintes tarefas: escrever textos, postar mensagens nas redes sociais, encaminhar emails, conversar com outras pessoas, produzir vídeos críticos e lançá-los na internet etc.. Como se vê, ficar na esfera domiciliar não indica necessariamente que o professor está alheio a agitação grevista, que se está de braços cruzados, movimentando-os apenas para comer ou beber algo. A imagem do professor-turista de férias parece denunciar não só uma caricatura generalizante como também uma visão estreita do fazer política. Existe vida crítica e inteligente para além das ruas e dos movimentos de ruas e assembleias.

Entenda-se bem: não estou defendendo os professores que ficam em casa nem tampouco propondo uma mudança de estratégia política para o movimento. Chamo apenas a atenção para o fato de que o ato de ficar em casa, negando-se a ir para as escolas lecionar, também constitui uma atitude política, também demonstra e comunica um gesto crítico, de insatisfação social. Não sair de casa, quando o governo espera e até exige que você vá trabalhar, não tem como não ser um ato de rebeldia e subversão. “Turistar” em sua própria residência quando o Estado ameaça cortar seu ponto parece-me ser uma postura bastante crítica e ousada, em uma palavra: provocadora à ética do trabalho burguesa e capitalista.

O SINTE e muitas pessoas ligadas à greve da Educação Pública no nosso estado parecem estar demasiadamente presos a uma determinada forma de luta política. A práxis social de greve, de assembleia, de manifestação em público foi uma forma de combate muito comum no século XIX, ao momento em que o proletariado consolidava-se como um grupo político, portador de ideias e pautas. Esta não é a única maneira de se reivindicar melhorias e mudanças, como bem sabemos. Saberia o SINTE ousar, como fez Paul Lafargue, outras formas de rebeldia social e política? Haveria em tal órgão o “direito a preguiça”?