Há momentos nos conflitos sociais e na luta de classes em que a ordem, o status quo e os dirigentes do poder lançam mão de discursos e estratégias intoleráveis. De sorte que as possíveis e legítimas objeções e suspeitas acerca das lideranças, das razões, da necessidade e dos métodos da luta no confronto com o poder são postas, temporariamente, entre parênteses com o propósito de assumir uma postura de recusa radical contra o que de modo algum pode ser tolerado nos embates e no antagonismo entre interesses diferentes.
A reação da secretária de Educação do Estado, Betânia Ramalho, à deflagração da greve dos professores da rede estadual de ensino do RN na manhã de segunda-feira é um contundente exemplo do “intolerável” na luta política e no conflito entre partes, pois abre precedentes perigosos e autoritários na relação do poder e do estado para com o dissenso, o conflito de interesses e, sobretudo, no tocante a direitos fundamentais, como o de reivindicação e greve. Nesse sentido, as restrições que, pessoalmente, cultivo em relação à greve como instrumento exclusivo de luta na educação não estão acima da crítica do que, a meu ver, são modos intoleráveis de lidar com o dissenso e o conflito numa democracia. Somos colocados então diante de perigos e retrocessos políticos e civilizatórios que convém não permitir.
Intolerável porque o princípio democrático básico na resolução de conflitos, ou seja, o diálogo e a negociação em busca de consenso cedeu o lugar à chantagem e as ameaças – cortes do ponto. Um estado que “negocia” prontamente com ameaças de retaliação antes de ouvir e dialogar nega de antemão o reconhecimento do outro, da parte contrária, como sujeito legítimo de fala e questionamento, nega o outro enquanto sujeito com direito a lutar pela efetivação e ampliação de seus direitos. Ora, se as instituições e a sociedade aceitam tal postura do Estado na lida contra aqueles que o interrogam e o pressionam, então, o motor da dinâmica da democracia – a luta por direitos – cessa e paralisa. E uma democracia engessada, paralisada, que não avança, é qualquer outra coisa, menos uma democracia.
Impedir ou retaliar a luta por direitos dos trabalhadores é um atentado contra o patrimônio de suor, sangue e lágrimas de gerações que doaram e arriscaram seus corpos num compromisso visceral de enfrentamento contra poderes abertamente muito mais arbitrários e violentos que os de hoje. Defender os direitos conquistados e já outorgados e reconhecidos pela justiça é a mais simples homenagem que podemos prestar àqueles que lutaram antes de nós contra o Estado e a injustiça sem que, muitas vezes, pudesse gozar em vida o que conquistaram. Pelas razões acima é, portanto, intolerável qualquer ação do Estado que cerceie o engajamento na luta e na ação política.
Intolerável também são as tentativas de enfraquecer instituições históricas criadas para equilibrar o jogo de forças entre as classes dominantes e as classes dominadas, a saber, os sindicatos. Eles mesmos produtos de lutas históricas. Os sindicatos são instituições que representam e lutam diretamente, e sob garantias e proteções, na defesa dos interesses de uma categoria. As divergências e críticas aos grupos políticos que ocupam, temporariamente, essas instituições não podem fazer com que se abra mão do significado e do legado dessas instituições. Além do mais, mitigar o poder de pressão e atuação do Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Rio Grande do Norte (SINTE-RN) através da redução drástica do número permitido de profissionais liberados de suas atribuições docentes para se dedicar à atividade sindical interessa e favorece unicamente aos poderes instituídos e dirigentes, e não aos professores e demais profissionais da educação. Portanto, tal medida fortalece aqueles contra quem, necessariamente, os profissionais da educação tem que lutar para alcançar os direitos, as reivindicações e as melhorias nas condições de trabalho tão almejadas.
Quando a secretária de educação afirma que a greve dos professores é “política” com o objetivo de desqualificar a legitimidade da decisão do sindicato, ela presta um desserviço que nenhum educador, nesses tempos cinzentos de desvalorização e negação da política, deveria fazer. Contribui com e alimenta, com efeito, este preconceito tão disseminado no Brasil segundo o qual “política” significa tão somente a atividade de interesseiros, corruptos e calculistas na luta por mais poder, benefícios e prestígio, ao invés de constituir o espaço de decisão e da atividade humana imprescindível na luta pelo bem comum, por mais liberdade, pela inclusão, por direitos e para corrigir as injustiças e os privilégios de uma sociedade.
Intolerável que se tente jogar a população, e pior ainda, os alunos e os pais, contra os professores por meio da manipulação tendenciosa de informações ou mesmo alimentando preconceitos sobre os professores como profissionais relapsos, displicentes e desinteressados em exercer sua profissão. Assim como a imprensa conservadora, concubina da elite do poder e das oligarquias locais, enquadra os manifestantes e militantes que ousam tomar às ruas como vândalos e desocupados, da mesma forma e com o mesmo objetivo dita imprensa enquadra os grevistas, fazendo o jogo dos poderes do estado, rotulando-os como vagabundos e egoístas que prejudicam à população com a paralisação de suas atividades.
Ora, inverter responsabilidades e as causas reais dos prejuízos à população, transferindo-as do Estado e dos gestores para os grevistas é uma estratégia de má fé para desqualificar as reivindicações e legitimar na sociedade a prestação de serviços públicos deficitários – desse modo, naturaliza-se a falta de professores e as escolas sucateadas ou sem manutenção, naturaliza-se a falta de médicos, medicamentos e leitos na saúde pública, naturaliza-se a insegurança nas ruas e a indignidade dos sistemas prisionais. Ou seja, culpar os grevistas cumpre a dupla finalidade de, por um lado, desculpabilizar o Estado e os gestores de suas responsabilidades, e, por outro, o mais nefasto e cruel, produzir na população um sentimento de aceitação, normalidade e naturalidade diante do que seria a inevitável deficiência e insuficiência de serviços públicos essenciais, como se fosse impossível, inimaginável ou mesmo ilegítimo dispor de serviços públicos bem estruturados, eficientes e com qualidade.
Todas essas coisas “intoleráveis” no plano dos valores, teóricas e abstratas demais para paladar de alguns, mas com efeitos práticos reais e terríveis, juntam-se aos “intoleráveis” mais do que conhecidos do “chão da escola”: a falta de professores que penaliza e coloca em ainda mais desvantagem na concorrência por vagas nas universidades e no mercado de trabalho aqueles que já estão por conta de sua origem social e econômica; a falta de transporte escolar, que, inclusive, provoca a morte de crianças que para chegarem até a escola submetem-se aos riscos do “pau de arará”; a falta de infraestrutura física e de recursos didáticos nas escolas que rotiniza e restringe as possibilidades pedagógicas de ensino-aprendizagem, deixando os professores unicamente com sua voz, um quadro e um giz ou pincel na mão.
Como aceitar, calado e resignado, tais situações intoleráveis e perigos? Não importa se algumas das reivindicações são, no momento, pouco prováveis de êxito. O questionamento que a greve e os professores lançam ao estado e na postura deste em lidar com o contraditório e as reivindicações, há riscos e atitudes do poder instituído que atentam contra compromissos fundamentais. Bem sei que há muitos colegas cansados, céticos e descrentes acerca dos benefícios, das intenções e efeitos positivos de uma greve. Muitos com críticas legítimas e ressalvas pertinentes contra o SINTE-RN e o seu histórico recente de atuação. Contudo ao fitar os semblantes receosos e enfadados com a luta política, como não lembrar o poema desse artista das energias utópicas, Bertolt Brecht, que certa vez escreveu: