As ciências sociais são um troço complicado. Muitas correntes e, resumamos de um modo um tanto quanto grosseiro, pontos de vista (ou vistas de um ponto). Como diria o velho mestre, por isso são tão fascinantes.
Quando entrei no curso de ciências sociais, logo me apaixonei. É que eu era jogador de xadrez e a sociologia, e, ultimamente, a ciência política me faziam lembrar a dinâmica das muitas aberturas e defesas do milenar jogo de estratégia militar. Apesar de não se restringir a isso, nenhum praticante de xadrez entra numa partida sem dominar o início, meio e fim dos vários modos de começar e desenvolver a luta no tabuleiro. E, perdendo, deve ter frieza reflexiva para revisar a disputa e procurar entender aonde falhou.
O meu processo de formação nas ciências sociais está no início – e espero que nunca acabe. Mas isso não me impede de monitorar (ou ao menos tentar) minhas ações, meu trajeto e construir algumas parcas conclusões provisórias. Para além de outros erros – e penso que não foram poucos – um em especial vem me chamando à atenção: o desprezo com que interagi com as teorias do individualismo metodológico e da escolha racional.
A recusa não foi uma escolha escolhida por mim. Na UFRN há uma militância às avessas contra tais tendências e um conjunto de falsas questões e respostas sobre elas. Porém, ao contrário do que imaginava – e sei que outros colegas assim concebem – não se trata de uma abertura ou defesa sem força competitiva, algo muito comum na história das estratégias boladas pelos enxadristas.
Parentese: o russo Garry Kasparov, Pelé do tabuleiro, foi fortemente acusado de entregar a mundialmente divulgada partida que fez e perdeu contra um computador em troca de dinheiro. O ataque não era gratuito. Tem plausibilidade. Sendo um dos maiores conhecedores da defesa siciliana – acho que o maior –, quando jogou com as pretas utilizou a já esquecida Karocan. A suspeita foi fundamentada nessa estranha opção – se tinha meios mais eficientes, eficazes e efetivos porque partir já perdido, com uma linha com fraco poder de contra-ataque e difícil possibilidade de tomar o centro do campo, objetivo fundamental para vencer o oponente?!
Voltando. Aprendi que o individualismo metodológico, teoria da escolha racional (estou colocando-as no mesmo saco, apesar de saber que apresentam pressupostos diversos. Só quero tornar a apresentação mais inteligível), essas correntes que partem do indivíduo como recurso desencadeador da análise, eram a “Karocan” e o Marxismo a Siciliana. E por que utilizam a Karocan, já que a teoria da escolha racional tem grande aceitação em várias universidades espalhadas pelo mundo? Ora, porque existem muitos cientistas sociais como o Garry Kasparov, que se vendem para o capitalismo, não cansei de ouvir e passei a reproduzir um pouco no tolo estilo bobo alegre.
Explicar um evento usando Jon Elster (importante autor de um livro sobre a teoria da escolha racional) ou Raymond Boudon (individualismo metodológico) era, e parece ser ainda para não poucos, sinônimo de neoliberal, reacionário, conservador. Afinal, o pesquisador está se rendendo a ideologia, por suposta ingenuidade alienada ou pura má fé (ideólogo da burguesia), e esquecendo qual é a ciência verdadeiramente crítica.
Ora, nada pode ser mais falso. Ninguém é tolo de esvaziar os pressupostos políticos de uma teoria. Porém, a correlação entre neoliberalismo e o individualismo metodológico e forçosa, para dizer o mínimo. Há gente boa, produzindo coisa legal, que pode ser “instrumentalizada”, tanto pela direita, como pela esquerda, o que já ocorre, alias.
A teoria da escolha racional parte da ideia – ontológica – de que todo mundo age racionalmente, negócio complicado é verdade. Porém, apresenta forte poder ilustrativo e consegue contextualizar ambientes e a consequente inclinação de agentes com eficácia superior ao recurso da luta de classe, sobretudo, aquele alicerçado num recorte maniqueísta do mundo. Centrar nos interesses, constrangimentos e crenças, numa visão sobre “custos e incentivos” da ação, possibilita explicar, por exemplo – mas não somente –, o jogo legislativo e o modo como vereadores, deputados e senadores se inserem nele.
A intenção aqui não é estabelecer uma nova hierarquia contrária a que vigora em determinados setores da UFRN. Mas apenas tentar chamar atenção para o fato de que não é possível negar algo sem ao menos saber do que se trata, sem considerá-lo, até para recusar a partir de outro patamar.
A antropóloga Mary Douglas nos dar uma lição disso em seu livro “Como as instituições pensam”. Num profícuo diálogo com Mancur Olson, autor da impactante obra “Lógica da ação coletiva”, a aluna de Evans Pritchard finca bases para afirmar seu durkheiminianismo. Ainda assim, incorpora a noção de “mecanismo”, bastante cara a teoria da escolha racional, até para enriquecer seu arcabouço teórico-metodológico.
Direcionar o olhar para as motivações dos atores, raciocínios mobilizados a partir de impressões dadas pelo contexto, das possibilidades postas e como o encadeamento delas cria situações, não raro, não planejadas… não é sinônimo de se render ao “monstro Capital”.
E mais: desenvolve uma relação intolerante com a ciência quem concebe a teoria da escolha racional desse modo. E, se jogasse xadrez, correria o grande risco de não ganhar uma. É que não costuma vencer naquele jogo quem não racionaliza, não leva a sério, as intenções do oponente.