DA ESTRATÉGIA DE DESMOBILIZAÇÃO, PASSANDO PELA DE PACIFICAÇÃO E DOMESTICAÇÃO E CULMINANDO NA CONCILIAÇÃO NACIONAL REFORMISTA:
UMA ANÁLISE DAS RESPOSTAS DO STATUS QUO À RECENTE ONDA DE PROTESTOS NO BRASIL.***
Prof. Vantiê Clínio Carvalho de Oliveira – Doutor em Ciências Sociais.
“E a primeira palavra dessa emancipação só pode ser a liberdade, não essa liberdade política, burguesa, tão preconizada e recomendada como objeto de conquista prévia pelo Sr. Marx e seus adeptos, mas a grande liberdade humana que, destruindo todas as correntes dogmáticas, metafísicas, políticas e jurídicas pelas quais todo mundo se encontra hoje oprimido, devolverá a todos, coletividades tanto quanto indivíduos, a plena autonomia de seus movimentos e de seu desenvolvimento, libertos, de uma vez por todas, de todos os inspetores, diretores e tutores.
A segunda palavra dessa emancipação, é solidariedade; não a solidariedade marxista, organizada de cima para baixo por um governo qualquer e imposta seja pela sua astúcia, seja pela força, às massas populares; não essa solidariedade de todos, que é a negação da liberdade de cada um, e que por isso mesmo se torna mentira, ficção, tendo por substituto real a escravidão.”
(Mikhail Bakunin).
Esta citação do célebre anarquista russo, nos permite entrever, de saída, a distinção radical que existe entre o campo libertário e todos os demais projetos políticos em jogo na contemporaneidade: os libertários (em que pese suas diferenças, tais como serem pacifistas ou não; mutualistas, individualistas, coletivistas, sindicalistas ou comunistas) lutam pela criação de um mundo (sim, pois são inter… supra… melhor: anti-nacionalistas) onde vigore a autonomia – e a palavra significa se dar a sua própria lei: auto (si mesmo) nomos (regra de comportamento) – de todos e de cada um e para isto entendem ser necessário desmantelar o sistema de monopólio (seja privado ou estatal) do acesso aos recursos materiais, junto com o aparato burocrático e a cadeia de comando hierárquico que caracterizam o Estado moderno, em qualquer de suas versões (liberal, fascinazista ou socialista “científico-realista”). Reside aí a sua radicalidade – no sentido de ir fundo, incondicionalmente, à raiz do problema – crítica.
(…) estudos em ciências sociais demonstram que o campo da política, da organização da vida coletiva – afinal, é a isto que o termo se remete, visto que, como se sabe, polis é a raiz da palavra, vinda do grego antigo e que designa a(s) cidade(s), ou seja, o(s) “ajuntamento(s)” humano(s) – nem sempre se fez/faz através de uma Ordem instituída via uma classe política especialmente encarregada da administração dos assuntos comuns da(s) sociedade(s), como é o caso nas sociedades com Estado(…)
Por outro lado, como se depreende do que acabou de ser dito, todos os demais projetos políticos (em que pese suas diferenças, tais como visarem implementar uma economia de mercado ou estatizada, um regime democrático ou ditatorial, uma ditadura burguesa ou proletária), todos, legitimam o pré(conceito)suposto de que vida política viável é sinônimo de Estado e suas correlatas instituições verticalizadas/hierárquicas (incluam-se aí os neoliberais, que advogam um Estado mínimo, mas, ainda Estado). Por isto – por não abrirem mão desta afirmação questionável da necessidade de uma autoridade constituída para que se organize a vida coletiva -, os libertários os classificam a todos como autoritários.
Deixar claro, inicialmente, estas distinções, se faz condição capital para o desenvolvimento da análise anunciada no título deste trabalho. Porém, antes de adentrarmos nesta, se faz necessário, ainda, um esclarecimento adicional acerca do que denominamos anteriormente como pré(conceito)suposto sobre a vida política.
Dissemos pré(conceito)suposto porque, estudos em ciências sociais demonstram que o campo da política, da organização da vida coletiva – afinal, é a isto que o termo se remete, visto que, como se sabe, polis é a raiz da palavra, vinda do grego antigo e que designa a(s) cidade(s), ou seja, o(s) “ajuntamento(s)” humano(s) – nem sempre se fez/faz através de uma Ordem instituída via uma classe política especialmente encarregada da administração dos assuntos comuns da(s) sociedade(s), como é o caso nas sociedades com Estado. Para exemplificarmos apenas com dois casos, citaremos os de uma cultura tradicional e de uma cultura moderna: o primeiro, trata-se de algumas tribos indígenas brasileiras estudadas pelo filósofo/antropólogo francês Pierre Clastres, cujas práticas sistemáticas de relegar seus líderes a um lugar social de atuação meramente simbólica, em benefício da manutenção do poder de decisão “política” nas mãos da comunidade, foram sintetizadas na expressão que serve de título à publicação resultante de seus estudos, qual seja, As Sociedades Contra o Estado.
Os atores e analistas políticos vinculados aos projetos autoritários em geral (adoto, aqui, a classificação proposta pelos libertários), seja de direita ou de esquerda (a esta altura, espero não ter dificuldades para convencer o leitor de que o(s) anarquismo(s) não são ideologias de esquerda, posto que esquerda e direita são classificações que se referem a projetos políticos que disputam a ocupação de algum lugar, de um ou de outro “lado”, do aparelho do Estado), interpretaram (movidos pela ignorância ou pela má fé) o surgimento no Brasil de um movimento social com estas características do M.P.L., como sendo um fenômeno de tipo completamente novo…
O segundo caso que tomamos como exemplo – o de uma cultura moderna -, é o da Revolução Espanhola, a maior dentre todas as experiências de auto regulação político-econômica (autogestão) já feita pelos anarquistas, até o presente: nesta experiência, cujo estopim se deu em Julho de 1936, com o início da guerra civil – desencadeada pela tentativa de golpe de estado perpetrada pelos fascistas liderados pelo general Franco -, a C.N.T. (Confederação Nacional do Trabalho), organização anarcossindicalista espanhola (à época, a maior organização sindical daquele país), soube aproveitar o momento crítico para impulsionar um verdadeiro processo revolucionário, que se caracterizou pela coletivização (abolição da propriedade/monopólio) de terras, indústrias e serviços (públicos, inclusive); a substituição do uso de dinheiro pela distribuição autogerida de produtos, bem como pela suplantação das forças estatais de segurança pela organização da autodefesa popular; de modo que, por longos meses, milhões de pessoas em várias cidades e no campo determinaram a sua vida social de forma direta, coletivamente, sem a ingerência de partidos, de grupos governantes e/ou de patrões (e mesmo testemunhos mais insuspeitos atestaram que a autogestão espanhola funcionou, que a sociedade não foi paralisada).
A pretexto do resgate desta experiência histórica, anteciparemos aqui uma questão – o que, mais adiante, nos será muito útil para o desenvolvimento de nossas conclusões, bem como para a retomada da análise da própria experiência em pauta -: O combate aos (e/ou a ausência de) partidos políticos, implica necessariamente em uma opção por ditaduras, seja de direita ou de esquerda?! A experiência da Revolução Espanhola demonstra a falácia desta afirmação que é fruto, no mínimo, de uma ignorância – quando não da promoção maliciosa da desinformação – com relação ao ideário libertário!!
Porém, se por democracia se admite apenas a ideia de um “jogo” político que necessita da arena restritiva do Estad(i)o e em que vigoram “regras do jogo” (Norberto Bobbio) onde se faz necessário (para que seja jogado) a existência de jogadores privilegiados, qual seja, agremiações/clubes/partidos, times cujas bandeiras/camisas servem para a identificação/representação de parcelas da sociedade – ao invés de um campo aberto à participação de todos e de qualquer um, onde as regras são (re)inventadas a qualquer momento, de acordo com as demandas reivindicadas e negociadas por todos e por qualquer um (como se diz ter sido a apropriação da prática do futebol entre alguns grupos indígenas) -, então, da(s) perspectiva(s) da(s) radicalidade(s) libertária(s), realmente, uma tal democracia de agremiações partidárias deve ser posta em xeque, radicalmente – visto ser, ao fim e ao cabo, uma aristocracia -, mas não para instaurar nenhum Estad(i)o (nem ditatorial, nem muito menos um novo Estad(i)o participativo onde se encena um jogo no qual os partidos/times, ainda jogadores privilegiados, supostamente jogam contemplando regras e táticas elaboradas de forma interativa com – ou pelos – cidadãosauxiliarestécnicos)!
Posto isto, estão lançadas as bases fundamentais para a construção da nossa análise.
A recente onda de protestos no Brasil teve seu estopim em algumas manifestações públicas organizadas por um movimento cuja reivindicação imediata era a revogação de aumentos recém-decretados para o valor das tarifas de transportes urbanos de massas, sendo sua principal bandeira a implantação da tarifa zero: o assim chamado “Movimento Passe Livre” (M.P.L.). Este movimento, que existe a uma década, é composto majoritariamente por jovens estudantes – em sua maioria, de classe média -, e já deixa entrever suas influências libertárias no seu próprio nome, o que é corroborado pelos métodos de organização e atuação que adota: as assembleias (convocações abertas) não hierarquizadas como lugar da tomada de decisões e a ação direta como forma de luta em que os próprios interessados na questão agem em favor de suas demandas, sem inter/mediação de representantes institucionalizados.
Acrescente-se aí a sua atitude refratária com relação às tentativas – de praxe – de ingerências dos partidos políticos e nos será permitido dizer que qualquer semelhança com a nossa imagem – anteriormente exposta – do jogo que se joga em campo aberto, jogado por todos e por qualquer um, sem o privilégio de times ou agremiações fracionárias/representativas, não será mera coincidência…
Este esboço de arqueologia (para usar um termo de inspiração foucaultiana) do libertarismo brasileiro, não é como (alguns poderiam alegar, atalhando) mera pretensão de “erudição libertária”: ele vai ajudar a compor o nosso quadro interpretativo/explicativo do(s) processo(s) em questão.
Os atores e analistas políticos vinculados aos projetos autoritários em geral (adoto, aqui, a classificação proposta pelos libertários), seja de direita ou de esquerda (a esta altura, espero não ter dificuldades para convencer o leitor de que o(s) anarquismo(s) não são ideologias de esquerda, posto que esquerda e direita são classificações que se referem a projetos políticos que disputam a ocupação de algum lugar, de um ou de outro “lado”, do aparelho do Estado), interpretaram (movidos pela ignorância ou pela má fé) o surgimento no Brasil de um movimento social com estas características do M.P.L., como sendo um fenômeno de tipo completamente novo…
Ora, nem o assembleísmo horizontal (não hierárquico) como método decisório, nem a ação direta como forma de luta, nem, tampouco, a crítica radical aos partidos políticos são características inéditas em organizações e/ou lutas sociais no Brasil: os primeiros sindicatos aqui organizados (no princípio do Século XX), de cunho anarquista – cujo maior expoente de sua organização foi a Confederação Operária Brasileira, a C.O.B. -, se configuraram por estes “moldes”, bem como implementaram lutas, nestas terras, contra a “carestia”!!
Claro, dirão alguns: a novidade, em nossa época, é que o M.P.L. é um movimento, com as citadas características, constituído por jovens estudantes de classe média, ao invés de trabalhadores. Porém, para os que conhecem a história dos movimentos libertários no Brasil e no mundo, isto também não configura nenhuma novidade: para ficar apenas em um exemplo – cuja escolha não foi aleatória, mas sim devida à influência direta ou indireta que este provavelmente exerceu sobre o M.P.L., visto haver participação de vários de seus integrantes em coletivos do movimento em questão -, citaremos o Movimento Anarco-Punk (M.A.P.), um movimento que ganha força mundialmente a partir do final dos anos oitenta/início dos noventa do Século XX e cuja experiência aqui no Brasil foi alvo de um estudo nosso publicado sob o título O Movimento Anarco-Punk: A Identidade e a Autonomia nas Produções e nas Vivências de Uma Tribo Urbana Juvenil.
Este esboço de arqueologia (para usar um termo de inspiração foucaultiana) do libertarismo brasileiro, não é como (alguns poderiam alegar, atalhando) mera pretensão de “erudição libertária”: ele vai ajudar a compor o nosso quadro interpretativo/explicativo do(s) processo(s) em questão. Prossigamos com a nossa análise.
[CONTINUA…]
*** NOTA DO EDITOR: o formato original do texto continha notas de rodapé que, por conveniência da leitura em tela e pela grande extensão do artigo enviado pelo autor, foram suprimidas, mantidos os números referentes às notas, para constar como base ao leitor que decidir ampliar sua curiosidade, buscando o artigo em sua íntegra, com o autor. Trata-se de um artigo que publicaremos em breves doses homeopáticas de provavelmente 10 partes, dado seu tamanho. Boa viagem.