Movimento social que perde a capacidade de se auto-criticar e, se for o caso, de rever suas práticas tende a criar o inverso daquilo que no início pretendia. A fé cega, nunca revisitada e alicerçada em estratégias com quantum pouco reflexivo, costuma criar o pior dos mundos. A chamada, de modo bem criativo, #RevoltadoBusão vem carecendo de reinvenção, de abordagens menos petrificadas – mais tolerantes – em torno de determinados autoritarismos automáticos, automatizadores, aumatizantes.
Até o presente momento, uma organização que diz lutar por transporte público de qualidade, pelo direito à cidade, titubeou diante de práticas antidemocráticas. Pior. Agiu para fortalecê-las. Foi assim em relação aos sindicatos, outros movimentos sociais e, principalmente, agremiações partidárias.
Não foi suficiente o acontecimento na grande passeata do dia 20/06, quando vários militantes foram agredidos por quem gritava “sem partidos”, numa explicíta defesa de uma unidade (“o povo na rua”) pregada em tempos pretéritos de totalitarismos e ditaduras. Filiados aos partidos de esquerda, sobretudo, aqueles que não “acordaram” agora, continuam sendo atacados moralmente e fisicamente, como no último ato na Câmara Municipal do Natal. E, sejamos sinceros, com uma certa complacência de membros da #RevoltadoBusão.
Na manifestação capitaneada pelos sindicatos, outra situação embaraçosa que mostra a dificuldade de um grupo que coloca o indivíduo atomizado – no estilo “curti” do facebook – acima do coletivo democraticamente consensuado. A #RevoltadoBusão não quis seguir junto com os sindicalistas como mais um movimento social ali presente, como estavam os sem-terra, por exemplo. Andaram na frente e descolados dos demais, para mostrarem que eram eles que “mandavam”, que “davam à linha” do protesto, atitude cara a quem tem sede de patronagem e não de agregação de intenções. Ao término, os “meninos pacíficos” não economizaram nas garrafadas e copos de água mineral – distribuídos pelas próprias centrais sindicais para refrescar os protestantes – contra os sindicalistas, que no carro de som, faziam o seu tradicional balanço e afirmação de bandeiras. Nem a democratização do microfone, firmada desde o início, foi suficiente para a violência cessar. Era possível, mais uma vez, ouvir: “o povo, unido, não precisa de partido”; mas com frase bastante cara à direita mais radical em seu já histórico (repaginado como se fosse algo novo) estilo udenista: “desce daí político ladrão”.
O denominado “Dia Nacional de Lutas” foi carimbado também com uma pequena desavessa sobre o uso do capuz por parte de alguns simpatizantes da #RevoltadoBusão. O representante de uma central sindical pediu para que os estudantes não cobrissem o rosto, o que não foi acatado. Como depois argumentou o sindicalista, as centrais não seriam responsabilizadas por qualquer ação inapropriada de terceiros. O pedido do líder trabalhista foi encarado como ultrajante. Entretanto, quem sempre prega a compreensão não foi capaz de utilizá-la para si próprio. A única preocupação girava em torno de arcar com qualquer revés, já que, caso algo acontecesse, a culpa cairia sobre os ombros dos sindicatos. Além de multas pesadas, haveria o inevitável desgaste junto à opinião pública. E há muita gente, querendo o fim da representação trabalhista. Atitudes violentas foram constatadas no decorrer de todo o trajeto, sendo que, naquele dia, a polícia não estava para enfrentamento. Aguentou – inerte – bombas, garrafadas e copadas vindas dos encapuzados. No final provou-se que, pelo menos no início daquela tarde, as faces foram cobertas para desabonar a manifestação.
Apesar de tudo, a #RevoltadoBusão tinha o apoio da população, que é simpática a pauta fundamental que compõe o movimento. No entanto, depois da depredação do dia 19 / 07, após novo ato, agora composto apenas pelos estudantes, a opinião pública sofreu uma inflexão. Os cidadãos natalenses não tolararam o vandalismo praticado contra patrimônio público e privado, que, ao contrário do que os intelectuais fundamentalistas antissistema vomitaram, será debitado na conta do pobre, quer seja recebendo serviço público ainda mais precário, quer seja até mesmo com demissão; ou alguém acredita que um empresário, também prejudicado, não repassará os “custos”?!
O ataque violento foi justificado de modo cínico por alguns como uma resposta à violência policial no decorrer de todas as manifestações. Conforme a boa filósofa: compreensível, mas não aceitável. É notório que a violência ocorreu. A Carta Potiguar não pensou duas vezes em usar seus parcos canhões verbais contra os agentes da lei, quando necessário. Tudo aqui foi notíciado e devidamente criticado. Mas truculência não se combate com truculência, ainda mais contra quem, em tese, está a favor dos atos.
No lugar do ressentimento, que foi canalizado contra a população, além de contra os policiais – gente como a gente, não agentes do mal –, o movimento social deveria (deve) ter usado a palavra reflexiva, juntado forças, tomado parte em favor de mais democracia e não à revelia de um regime político, que foi fundamental para criar um sistema de proteção para os, como enquadra a linguagem eufemista, “menos afortunados”. Quem luta por direitos não cultiva “inimigos”. Pelo contrário. Procura congregar parceiros, convencer a sociedade sobre sua causa, transformar. Não mais do mesmo.
Um movimento social que se diz consciente não pode também atentar contra um fórum de representação, deliberação e debate, tal como é a Câmara Municipal do Natal. A pichação dos seus muros, prática representada por alguns como algo descolado, progressista, anarquista, na verdade, caracteriza um verdadeiro tiro no pé. Primeiro porque mostra pouco zelo em relação à coisa pública, um nada positivo cartão de visitas; segundo porque, mais uma vez, quem mais depende dos serviços não prestados por empresas privadas é quem sairá perdendo. Ora, as paredes da CMN serão novamente pintadas. O dinheiro da manutenção sairá de fonte já conhecida, recurso que poderia ser investido em ações, digamos, mais nobres, tais como a reforma de um posto de saúde. Há 15 deles em Natal precisando de reparos e um secretário louco para resolver a situação. E fica a contradição: como pode lutar pelo direito à cidade, se não cuida da sua cidade?!
Na comunidade que mantém no facebook, mais segregação. Contestações e questionamentos de quem está contribuindo desde o início e só quer ver os objetivos alcançados, desencadeia o afastamento do mesmo e posterior bloqueio do grupo. O discurso da horizontalidade e pluralidade de pensamento se materializa na forma daquilo que pode ou não ser dito. É a propalada ausência de hierarquias exercida com o que há de mais atrasado – a tentativa de calar o diferente, de impedir a alteridade.
A #RevoltadoBusão não apresenta também conquistas, o leitor pode indagar. Sim, sem dúvida. Mas a intenção do presente texto não foi a de celebrar. As páginas deste veículo estão atravessadas pela a afirmação dessa e outras lutas sociais. O que se exerce aqui é a formulação do necessário trabalho da crítica, pois que, sem ela, os coletivos se transformam em tudo aquilo que antes reprovavam, ou caminham feitos bobos alegres para o “precipício”. A Carta Potiguar desempenha um papel e, nele, não está incluído negociar princípios só para ficar “bem na fita” com nossos leitores. Este tipo de oportunismo intelectual será sempre rechaçado por aqui.
Não há mais sentido fechar as avenidas de Natal. Os cidadãos já conhecem bem a pauta, sabem qual é a luta que fundamenta o discurso da #RevoltadoBusão. É preciso evitar o que já é encarado, não sem justificativa plausível, como transtorno. Urge sair da pré-política e fazer a política com P maiúsculo. Fazer um chamamento que alavanque todos os grupos progressistas (porque trabalham por mais inclusão, mais democracia) em prol da articulação de um novo sistema de transporte verdadeiramente público, com controle social e que, portanto, atenda aos anseios dos natalenses – partidos, sindicatos, movimentos sociais, ongs, grupos de bairro, associações, entidades estudantis, diretórios de estudantes, centros acadêmicos, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil, vereadores, deputados estaduais e federais, lideranças, simpatizantes que queiram contribuir devem ser bem vindos. Os integrantes da #RevoltadoBusão devem saber falar, mas também ouvir o que todos têm a dizer. Nada de monopólio da razão. Participando, debatendo, agregando, consensuando será possível avançar.