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Das experiências-limite ou Da arte de ser selvagem

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 ***Por Avelino Neto (Mestre em Filosofia e Professor do IFRN)

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A experiência-limite rasga as fronteiras daquele sujeito que se acreditava fixo, imutável, autocentrado, soberano, enfim, o famigerado sujeito moderno, cartesiano, que exerceu forte influência sobre a nossa maneira de estruturar o conhecimento acerca do mundo e da própria existência no Ocidente.

Uma das características mais marcantes da arte é a capacidade de fabricação de uma realidade que, vibrando os nossos sentidos, nos faz sentir participantes dela. Tal realidade não deve ser confundida com uma espécie de cópia, uma representação do real ou mesmo com um outro mundo. Ela se constitui, na verdade, num desdobramento deste, numa ultrapassagem dos seus limites. A experiência estética nos insere num universo que borra as fronteiras do tempo e do espaço, deslocando o sujeito para além dos limiares nos quais ele antes estava circunscrito. Se fôssemos conceitualizar essa perspectiva, recorreríamos à noção de experiência-limite, em Georges Bataille e Maurice Blanchot.

A experiência-limite rasga as fronteiras daquele sujeito que se acreditava fixo, imutável, autocentrado, soberano, enfim, o famigerado sujeito moderno, cartesiano, que exerceu forte influência sobre a nossa maneira de estruturar o conhecimento acerca do mundo e da própria existência no Ocidente. Nessa compreensão de subjetividade, o pensamento representa o mundo na mente, e a linguagem, por sua vez, representa o pensamento na fala, tudo isso de modo absolutamente linear e, por isso, correspondente. A experiência à qual nos referimos, contudo, como uma catapulta, lança o sujeito, pela linguagem artística, para um espaço em que essa linearidade é desmantelada e, em seu lugar, surge um vazio; a esse vazio, que desequilibra completamente o sujeito, segue-se a laboriosa experiência de mobilizar os sentidos para vivenciar a nova realidade a ser fabricada a partir do caos. Ora, esse itinerário não se dá somente na arte, mas também na vida, e talvez simultaneamente.

As experiências-limite pelas quais todos passamos – a morte, o luto, a dor, o amor, a paixão, a sexualidade, a loucura, o prazer, dentre outras – obrigam o sujeito a exercer sua liberdade para além da mera escolha dicotômica entre “isto ou aquilo”, como na poesia de Cecília Meireles. Elas exigem um paciente exercício de criação, de ressignificação, de ressurgimento, aquele trabalho ascético de si sobre si que Michel Foucault, inspirando-se em Baudelaire e retomando a tradição greco-romana, chamou de estética da existência. É preciso fabricar-se a si mesmo, caso se queira continuar a viver plenamente. Do vazio com que nos deparamos quando transgredimos os limites, do pavor advindo do encontro com o nada inesperado, nasce a possibilidade de reerguer-se. Reassumir a posição vertical, certamente, é um processo doloroso e dispendioso. Contudo, é preciso estetizar esse sofrimento, encontrar a possibilidade de beleza que há em sua nebulosidade. Afinal, só sente dor quem está vivo. O sofrimento das experiências-limite atam-nos, assim, ao âmago de uma vida que se mostra profundamente intensa para quem com ela se engaja. Nela, a possibilidade de uma estética da existência aparece não como uma espécie de “autoajuda filosófica”, mas enquanto exercício sobre a própria subjetividade que, moldando-se a si mesma, o faz enquanto prática de resistência e enfrentamento diante das tentativas de sujeição, de dominação e de submissão dos indivíduos.

wwwNa arte, especifica mente na literatura francesa, além de Bataille e Blanchot, temos Albert Camus como um autor que soube bem representar essa vivência por meio daliteratura do absurdo. Quem não se impressiona com o personagem Meursault, de O Estrangeiro? Tendo cometido homicídio, Meursault é levado ao tribunal e lá tem exposta sua vida pregressa. No desenrolar do julgamento, vem à tona um fato que a todos assombra: o réu não chorou no enterro da mãe, morta há pouco tempo, e isso passa a ser mais enfatizado do que o próprio crime. A partir de então, a cena segue como uma tentativa de decifrar aquele homem enigmático, de descobrir sua verdade.  Os discursantes, então, constatam a sua completa indiferença aos valores instituídos, aos padrões de comportamento, às esperanças teleológicas, à fé num suposto sentido intrínseco aos acontecimentos. É nesse cenário que Meursault afirma: “Mesmo do lugar dos réus, é sempre interessante ouvir falar de nós mesmos. Durante os arrazoados do procurador e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim e talvez até mais de mim, que do meu crime. Eram, aliás, assim tão diferentes estes discursos?”

É preciso fabricar-se a si mesmo, caso se queira continuar a viver plenamente. Do vazio com que nos deparamos quando transgredimos os limites, do pavor advindo do encontro com o nada inesperado, nasce a possibilidade de reerguer-se.

Camus apresenta brilhantemente aí o tema do absurdo, típico do pensamento existencialista do século XX. Assinalada pela descontinuidade dos fatos, pelo caráter fragmentário e abrupto da vida humana, a experiência do absurdo é incorporada por Meursault, um ser que não era simplesmente indiferente, mas que acima de tudo era absolutamente fiel a si mesmo, à imanência do tempo presente, à liberdade de fruir aquilo e somente aquilo que lhe aparecia na simplicidade do agora e sentir este mundo no que ele pode dar de melhor. Entretanto, Meursault é absurdamente estranho, alheio às esperanças constituídas acerca dos modos corretos de ser/agir/falar/pensar. Ele rompeu com toda a linearidade daí esperada. É, enfim, o arquétipo de um estrangeiro, de um viajante.

www2Tal perspectiva literária não nos parece muito distante da vida do jovem viajante Christopher McCandless, que no início dos anos 90, recém-formado, deixou o seio de sua família de classe média e um futuro promissor para perambular pela América do Norte, descobrindo e exercitando a própria liberdade.Devido a trabalhos que arranjava e pessoas a quem se ligava, reside temporariamente em alguns locais. Depois de certo tempo, fixa-se num trêiler, na natureza selvagem do Alasca. Sua vida foi transformada em livro por Jon Krakauer em 1996 e em filme em 2007, sob a direção de Sean Penn. Into the wild (Na natureza selvagem, em português) encanta pelo misterioso brilho daquela jovem existência que transborda de intensidade. Ele não sabia bem o que buscava; só sabia que, distanciando-se daquela realidade na qual estava anteriormente inserido, se aproximaria mais do que acreditava ser uma vida mais autêntica. O enredo faz com que, gradualmente, o espectador também adentre e se envolva – não sem angústia e aperto no peito – no deslocamento de McCandless, que traça, com suas viagens, uma verdadeira cartografia de uma nova subjetividade, livre das amarras e dos medos das fronteiras.

O desenrolar da película apresenta, com peculiar beleza na fotografia, na música, nos diálogos e, sobretudo, nas falas cheias de intensidade de McCandless, a constituição de uma natureza cada vez mais selvagem – tanto a espacial quanto a subjetiva. Presenciamos, ali, qual vagoroso e doloroso parto, o nascimento de um “ser selvagem” ou de um “ser bruto”, como diria o filósofo Merleau-Ponty. Um ser que não hesitou em ultrapassar os limites impostos à existência dita normal para encontrar-se, e encontrar-se num mundo onde as significações não fossem já previamente dadas pela sociedade materialista e mesquinha que conhecera em sua vida até o fim da faculdade.Ele queria mais: desejava uma natureza em seu estado bruto. Quando a encontrou fisicamente, McCandless criou, inventou seu modo de vida puro. Não é só a natureza – a floresta onde ele morava – que era selvagem, mas era a sua existência que, pouco a pouco, foi se apropriando desse estado bruto, um estado de envolvimento absoluto entre o mundo e o Ser, a carne e a natureza, estado no qual os limites antes conhecidos já não faziam sentido algum.

www1McCandless viveu a experiência-limite em seu corpo – na fome, no frio, na sede, no emagrecimento, na inospitalidade da floresta. Como Meursault, não hesitou em tornar-se estranho para poder ser, e não para ser qualquer coisa, mas para ser Ser. Sua viagem é uma verdadeira ontologia de um ser selvagem, intenso, apaixonante, mas também um caminho repleto de dor e sofrimento, como toda experiência-limite. Meursault – enquanto habitante do espaço literário – e McCandless, enquanto habitante do espaço físico – são alegorias do que a busca por uma vida escandalosamente autêntica pode nos trazer. Certamente, muitos de nós temos um pouco de Meursault e de McCandless. Vivemos as nossas próprias experiências-limite. Enfrentamos as zonas inóspitas do nosso interior e do tecido social. Também ficamos um tanto quanto perdidos, de vez em quando, “tendo quase certeza de que não somos daqui”, como diria a canção da Legião Urbana. A busca por sentido, não raro, alimenta a existência de muitos de nós. Entretanto, aprendamos com os dois personagens: não precisamos necessariamente encontrar o sentido. Podemos inventá-lo. Podemos escrever, nós mesmos, a nossa natureza selvagem, a nossa vida pura, transformando os espaços ou criando outros, como os personagens fizeram.

A essa altura, não sei mais se estou falando da arte ou da vida. Mas sei que dessa empreitada não podemos fugir. Por isso, aproveitemos ador, a lágrima e o sangue das nossas experiências-limite, e os coloquemos na ponta do lápis. Assim, as páginas de nossa escrita estarão encharcadas de carne viva. Então, não é mais o Verbo que se faz carne – como na imagem bíblica da Encarnação (Jó 1) – mas é a carne que se faz palavra, é a vida se torna escrita e, na escrita, arte.