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O Papa Francisco e os usos da pobreza

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papa-franciscoSe é verdadeiro que a escolha de Jorge Mario Bergoglio como Papa surpreendeu a maior parte dos comentaristas e analistas do Vaticano, por outro lado, não se pode dizer o mesmo acerca da pertinência do comportamento e do perfil do novo Papa em relação ao momento vivido pela Igreja Católica. Visto mais de perto e cotejado com a situação de crise da Igreja Católica, a escolha e o perfil do Papa Francisco não possuem nada de acaso ou surpreendente. Por ocasião de sua visita ao Brasil e de todo o deslumbramento midiático para com sua personalidade, eis um oportuno momento para analisarmos algumas coisas sobre o novo pontífice, e, assim, sairmos do senso comum celebratório das virtudes franciscanas de Bergoglio.

Desde os primeiros pronunciamentos e aparições públicas, o Papa Francisco chamou a atenção, ou melhor, cativou as pessoas e a opinião pública por suas demonstrações e gestos de humildade e simplicidade. Da escolha do nome – Francisco – a forma despretensiosa de se vestir – sem a estola vermelha e com sapatos velhos e simples – às atitudes de dispensar o luxuoso carro oficial do Vaticano e o suntuoso apartamento papal e pagar as próprias contas, Jorge Mario Bergoglio não cessa de irradiar modéstia e desapego. Sua mensagem é direta e cristalina: defende uma nova mentalidade da Igreja, mais desprendida, humilde e próxima aos anseios e à realidade de seus fiéis. O Papa Francisco busca inspirar e reanimar nos corações cristãos e na opinião pública aquela suposta aura de pureza dos primórdios do cristianismo primitivo.

Sao-Francisco-de-AsisO Papa Francisco reúne diversos atributos pessoais que o diferencia em comparação ao seu sóbrio antecessor na cadeira de Pedro, Bento XVI; o carisma, o humor, o modo manso e acolhedor da fala, ímpeto mais missionário do que intelectual, etc.. Do mesmo modo, sua postura quanto à condução da Igreja parece privilegiar outros elementos, embora o desafio político-religioso seja o mesmo, qual seja; enfrentar a crise de legitimidade de uma instituição abalada por crises, escândalos e perda de fiéis no mundo inteiro. Porém, sua estratégia não é de marcar uma posição, progressista ou conservadora, com respeito às mudanças e avanços no campo dos comportamentos e dos costumes. O Papa Francisco não veio nem reformar nem endurecer os posicionamentos da Igreja a esse propósito. Sua estratégia para renovar a Igreja e sua imagem aborda outro campo de problemas e lança mão de outra estratégia político-ideológica. É, precisamente nesse ponto, que a humildade e a pobreza como virtudes cumprem seu papel ideológico para atenuar a crise de legitimidade do Vaticano.

Na visão clássica de mundo cristã, a pobreza sempre teve um significado de pureza e de purificação ao passo que a riqueza e a ostentação sempre foram vista com desconfiança e suspeita, como indícios de corrupção, apego ao mundo e de práticas pecaminosas.  Os mais pobres como sendo, a um só tempo, vítimas inocentes da injustiça do mundo e da maldade humana e seres quase imunes à corrupção e à soberba da vida. Daí, o imperativo moral do cristianismo como uma religião salvífica direcionada aos desfavorecidos e ao seu sofrimento; “Bem aventurado os pobres, os misericordiosos, os mansos, os famintos e sedentos por justiça…”.

Num outro sentido, a pobreza, sobretudo quando voluntária, representa um ato nobre de renúncia ao mundo e de seus prazeres, privilégios e ambições em busca de uma relação mais autêntica e direta com Deus. Ser pobre significa despojar-se de si e do mundo e, assim, colocar-se integralmente para os designíos de Deus. A pobreza, nesse sentido, possui uma substância ética mais pura e livre na qual nem o ego ou o mundo são obstáculos para dedicar-se à obra, à adoração e à obediência dos mandamentos divinos. Ela é um signo ético de beatitude.

A riqueza, por sua vez, possui uma série de atrativos e privilégios que podem desviar o crente dos mandamentos e de uma vida reta; a ambição, o amor ao poder, a ostentação, a soberba, o apego ao mundo e seus bens. Por isso, é entendida como corruptora e mais inclinada à corrupção, por fazer com que se permaneça apegado ao mundo e seus privilégios. Se, por um lado, na mentalidade cristã católica, a riqueza e o enriquecimento são concebidos com desconfiança, como produtos de vantagens mundanas, a pobreza, por outro lado, é vista como sendo produto de injustiças e violências mundanas ao mesmo tempo em que representa, para aqueles que podem se desprender materialmente e dedicar-se à obra de Deus e à caridade, um ato de nobreza e superioridade ética.

O Papa Francisco, como o próprio nome adotado já sugere, retoma esta ideia da tradição cristã da pobreza como virtude e pureza, e não como desgraça, da pobreza e da humildade como signos da inocência, de humanidade, da elevação ética, da retidão e do desprendimento em relação aos poderes, desejos e ambições seculares. Sua veemente postura de rejeição aos privilégios de sua posição deve ser entendida sob este horizonte de sentido que alça a simplicidade a um status ético elevado. Porém, a questão aqui está além de virtudes pessoais. Ela possui um inegável papel ideológico, qual seja: o de purificar uma instituição manchada e corrompida ao longo dos séculos com toda sorte de escândalos, abusos e tramoias financeiras, sexuais, políticas.

Bergoglio busca, na verdade, a partir do uso ideológico dos sentidos da pobreza atenuar ou desviar a atenção do profundo abismo e contradição existentes entre a história da Igreja e o cotidiano de suas cúpulas com as bases morais que a própria Igreja e sua doutrina instituíram. Uma moralidade pregada e que, nos mais diversos aspectos, as lideranças da Igreja não seguem. Não se trata de sustentar que o Papa Francisco é um hipócrita ou um cínico. Não. Apenas de sugerir e analisar, criticamente, os efeitos políticos e ideológicos de sua postura e caráter, de acordo com o atual momento vivido pelas cúpulas do poder no Vaticano, e de como eles atendem aos interesses da Igreja para modificar seu desgastado e enfraquecido capital simbólico e político.

Quem se deixa embasbacar e deslumbrar com o carisma de Bergoglio e seus gestos singelos de humildade acaba por deixar de lado os significados políticos imiscuídos em tais atitudes e de sua pertinência para com a atual situação do Vaticano. Afinal de contas, na história do catolicismo, os pobres e a pobreza foram sempre ou objetos de poder – caridade e assistência – ou ardil ideológica da má consciência como signo de superioridade ética. Uma instituição repleta de signos de ostentação, luxo, poder e status, o que, alias, não deixa esquecer a história de saque e soberba da Igreja Católica, um jesuíta cheio de carisma, advogando as virtudes éticas da humildade e da simplicidade vem bem à calhar para os propósitos políticos dessa instituição.

Se Nietzsche acerta quando identifica que na origem da mutação simbólica da ideia de um Deus como expressão de um povo forte  – o Deus judaico, o “Senhor dos exércitos” – para a noção de um Deus para os fracos enquanto “ordem moral do mundo” -, único campo onde os dominados e desfavorecidos, na linguagem do filósofo alemão, podem “vencer e triunfar” – está a vontade de poder dos sacerdotes frente a nova situação de dominação e de decadência dos judeus em relação a outros povos; então, por que não pensar no mesmo artifício ardiloso que, na situação atual, lança mão dos conceitos de pobreza e humildade para transformar os sentidos de um Igreja corrompida, abalada e deslegitimada para ganhar os apoios necessários para lograr o poder de condução das almas e dos negócios cristãos?

Como dizia o filósofo, não há criatura no céu e na terra que mais abuse do nome de Deus do que os sacerdotes. Estes chamam “Vontade de Deus” os meios necessários para alcançar os seus próprios interesses materiais e ideais. E, como a história mostra, os meios para alcançar os interesses mudam conforme mudam as relações de força e de sentido. Há décadas, o Vaticano vive uma crise de legitimidade. Para salvar a imagem de uma casta de sacerdotes corrompidos, soberbos e ambiciosos nada melhor do que um “messias franciscano”…