Ou quando as ideias se tornam perigosas
Em geral, concebemos o trabalho como fonte de autorrealização individual. Afinal, o prestígio e a valorização social do trabalho em nossa sociedade ultrapassa a garantia da sobrevivência física e material que ele proporciona por meio dos rendimentos pessoais gerados. Seu valor e prestígio radicam, com efeito, no fomento do reconhecimento social e do sentimento de satisfação pessoal de perceber-se e ser percebido como alguém ativo, autônomo, importante, com uma vocação e um papel na sociedade. O trabalho brinda sentido e identidade às pessoas. No entanto, ao contrário das promessas da narrativa oficial sobre os benefícios dos frutos do trabalho, este pode ser também uma atividade e lugar de profundo adoecimento e sofrimento emocional e físico para os indivíduos. E, assim, o sonho de estabilidade, autonomia e realização convertem-se em pesadelo, frustração e enfermidades.
O ambiente de trabalho é um espaço marcado por tensão e ansiedade decorrentes não simplesmente da personalidade das pessoas que nele tem de necessariamente conviver mas das próprias condições de trabalho; da competição, das hierarquias, das cobranças, prazos, da preocupação com a manutenção do emprego, etc.. As violências que nascem e se exercem nas relações de trabalho são inseparáveis das condições sociais e psicológicas que constituem e mantém as próprias organizações de trabalho de acordo com suas características de funcionamento e objetivos.
A denúncia e relato de assédio moral que recebemos de uma colega de curso e universidade – Ciências Sociais UFRN (1999-2003) -, Luciana Silva Mendes Lucena, e que foi tratada também em recente reportagem da Revista Isto É, sinaliza em cores nítidas os novos riscos, dores e medos do trabalho nas sociedades contemporâneas. Ainda que grandes parcelas dos trabalhadores continuem a viver sob o risco dos acidentes e da insalubridade laborativa, típica das condições industriais do trabalho das sociedades do século XIX, atualmente os golpes das condições laborais atingem mais diretamente o equilíbrio psíquico e a autoestima dos trabalhadores, desencadeando novos sofrimentos, sintomas e doenças.
Luciana foi oficial temporária do exército brasileiro, trabalhou como professora de Sociologia no Colégio Militar de Brasília. Ingressou nessa instituição em 2010, passando, com excelência, em todos os testes intelectuais, físicos e psicológicos militares. Apesar das, digamos assim, “particularidades” pedagógicas e interpessoais do militarismo, a professora afirmou que, no primeiro ano, conseguiu contornar e desempenhar, com satisfação e prazer, suas atividades docentes sem maiores problemas.
As dificuldades começaram a surgir quando Luciana foi transferida para uma outra seção na qual o coronel José Paulo Fernandes, formado na velha guarda do período militar e autoritário do Brasil, chefiava. Daí em diante, os assédios morais, os desentendimentos, os constrangimentos e a exposição vexatória se tornaram frequentes, relata a professora. A origem do conflito e do desentendimento entre a professora e o coronel residia no conteúdo das aulas de Sociologia, especialmente aquelas que versavam sobre Karl Marx. Havia orientação geral para que a temática da ditadura militar fosse tratada como “Revolução democrática de 1964”, conforme constatava nos livros didáticos adotados na disciplina de História.
A professora de sociologia passou então a ter de conviver com insinuações constantes de proselitismo político, doutrinamento e de exercer influência negativa sobre os alunos. As investidas contra sua autonomia intelectual e liberdade de cátedra em sala de aula atingem diretamente as suas aulas, as quais passaram a ser ministradas de portas abertas para a vigilância e observação de seus “superiores”. O estopim da perseguição e da violência moral exercida pelo coronel sobre Luciana ocorre quando o primeiro acusa a professora na frente de outros professores de sumir com o cartão de respostas de uma aluna. Luciana, não suportando mais, entra de licença médica e se afasta do Colégio até Junho de 2012. Porém, ao retornar ao colégio com um atestado de mudança de seção, assinado por um psiquiatra militar e um perito militar, ainda sim, tem o seu pedido de transferência negado. Dessa forma, Luciana é mandada pelo colégio para a mesma seção de seu algoz.
Como não poderia deixar de ser, o resultado foi o desenvolvimento de pânico e aversão em relação ao colégio. A saúde emocional de Luciana se deteriora progressivamente, prolongando o seu tratamento, até que, em novembro de 2012, ela é removida da seção em que foi forçada a permanecer. No entanto, não bastasse todos os danos morais e emocionais causados pelo assédio moral, a insensibilidade e o autoritarismo militar do Colégio e do dito coronel, a professora perdeu o direito de renovação do contrato, por ter permanecido 3 meses afastada, e quando retornou as suas atividades de docente foi colocada para ensinar uma matéria fora de sua especialidade e formação. Os adoecimentos e assédios continuaram. Somente em 12 de março do presente ano, Luciana foi licenciada definitivamente.
O caso de assédio moral da professora de sociologia do Colégio Militar de Brasília está sendo investigado pela Ministério Público Federal. Luciana tem contado com o fundamental apoio de uma ONG em Direitos Humanos criada por ex-militares, expulsos das forças armadas por serem homossexuais.
A denúncia e o relato de Luciana constituem um caso cristalino e terrível de assédio moral, isto é, de exposição sistemática e hostil de outrem a situações humilhantes, de perseguição e de vexação no ambiente de trabalho. O assédio moral é um fenômeno de violência e desrespeito que, nas sociedades capitalistas contemporâneas, parece não conhecer limites geográficos, ocupacionais e organizacionais. Em conjunto com a degradação das condições de trabalho, promovida pelo avanço da precarização e da flexibilização das relações e dos empregos, os relatos de assédio moral se multiplicam nas mais diversas profissões, organizações e países.
Em que pese todas as peculiaridades de cada caso e contexto, a destruição psíquica do outro por meio de investidas que tornem o trabalho insuportável, ou seja, que transformem a atividade laboral e o local de trabalho da vítima na fonte de seu sofrimento, é o elemento comum que define esta forma de violência psicológica que é o assédio moral. Ela é muito mais do que o abuso de poder ou a prática de intimidação pelo poder de coerção. O assédio moral consiste na degradação sistemática e prolongada das condições psicológicas e emocionais do trabalho com o objetivo de atingir e fazer adoecer o trabalhador em seu próprio equilíbrio psíquico, em sua integridade pessoal e identidade profissional.
No caso relatado, temos, ainda, o agravante do ambiente militar, o qual, como é público e notório, é caracterizado por relações rigorosamente hierárquicas e onde o poder de comando e a obediência às ordens são princípios sagrados e cultuados. Instituições em que o militarismo é o princípio organizador das relações sociais possuem, em tese, um caldo extremamente favorável ao desenvolvimento e a prática do assédio moral. O mais terrível do assédio moral em instituições militares é que ele encontra nas próprias características do militarismo as condições responsáveis por abafá-lo, neutralizá-lo, silenciá-lo, pois a naturalização das relações autoritárias e das humilhações leva aqueles que sofrem com os assédios morais a aceitarem como práticas “normais”, “legítimas” e “inevitáveis” no âmbito militar.
Há um outro aspecto relevante no assédio moral sofrido pela professora Luciana, qual seja, a perseguição de ideias e do ensino de Sociologia. Não é gratuito, portanto, que juntamente com a Filosofia, a Sociologia tem sido banida da grade curricular da educação básica das escolas brasileiras durante a ditadura militar. O ensino de uma disciplina potencialmente desmistificadora e desnaturalizadora das relações humanas como a Sociologia traz, evidentemente, delicados problemas e preocupações para aqueles que se dedicam a administrar a ordem e o poder.
Contudo, engana-se quem pensa que a vigilância e a perseguição de supervisores pedagógicos contra professores de Sociologia restringe-se a instituições militares de ensino. Mesmo em organizações civis de ensino, supostamente definidas e comprometidas com convicções políticas e pedagógicas liberais, o ensino de Sociologia é visto como fonte de “ideias perigosas e impróprias” às mentes jovens e em formação, estando os seus professores sob constante vigilância de supervisores e coordenadores pedagógicos, tendo que prestar conta das atividades, da didática e dos conteúdos que debatem e ensinam em sala de aula. Nas escolares particulares, muitos professores em geral e os de sociologia em particular tem sofrido com assédio moral, restrições em sua autonomia pedagógica e, até mesmo, com demissões por razões políticas e morais.
Nas práticas de assédio moral no trabalho, diversas motivações entram em jogo para orientar e desencadear a perseguição e a prática sistemática de desrespeito e destruição psíquica do outro; desde preconceitos, estigmas sociais às razões políticas e econômicas presentes nas próprias organizações e instituições como também nas próprias pessoas que as personificam com algum grau de poder e status. O combate ao assédio moral é uma tarefa conjunta das autoridades públicas, das organizações e empresas e da sociedade civil.