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Cidadão de bem, uma categoria autoritária!

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images (10)Como não poderia deixar de ser, as manifestações que varreram o Brasil foram, sobretudo em seu início, confrontadas a propósito dos transtornos que elas causam. E nisso, um velho, surrado e batido discurso ganhou novamente às falas: o discurso do “cidadão de bem”. Esta é uma noção perigosa, e que vez por outra reaparece na esfera pública.

Ela surge em momentos de grande comoção social. É uma figura retórica emblemática que sempre emerge para demarcar, com firmeza, o lugar dos “bons”, dos retos e justos da sociedade. A noção de “cidadão de bem” é utilizada enquanto contraponto social e ético contra aquelas outras figuras que representariam os supostos agentes do caos ou da desordem social; os corruptos, os delinquentes, os agitadores políticos, militantes. Cada uma dessas figuras nocivas implicaria uma ameaça, um elemento perturbador, desagregador dos sentidos de justiça e de ordem da sociedade.

Em síntese, o discurso do “cidadão de bem” contrapõe, de um lado, os verdadeiros cidadãos, quer dizer, os pagadores de impostos, trabalhadores e pais de família, e, de outro, os “maus cidadãos”, os vândalos, vagabundos e agitadores políticos. Em outras palavras, os comprometidos com a ordem e os causadores da desordem.

O recurso à figura do vândalo para desqualificar os manifestantes deve ser entendido tendo em vista esse pano de fundo de distinção social entre as pessoas. Ela é uma peça numa ideologia que não se esgota na questão da criminalização dos movimentos sociais. É evidente que se trata de uma estratégia de desqualificação e deslegitimação mediante o uso de estigmas sociais. Daí todo o alarde e histeria em cima dos rostos cobertos com camisas, capuz e máscaras. Porém, estigmatizar a mobilização popular e os estudantes não é uma atitude isolada e descontextualizada. Pelo contrário, ela está inserida na mesma ideologia em nome da qual ataca-se os Direitos Humanos, se aplaude o extermínio nas periferias e se clama por uma legislação penal mais dura. E, nessa ideologia conservadora, a ideia de “cidadão de bem” cumpre um papel decisivo e perverso.

Ora, o apelo retórico à figura do “cidadão de bem” visa criar uma hierarquia classificatória entre pessoas muito mais do que uma simples diferenciação entre elas. O que se hierarquiza e se classifica aqui, a partir dessa noção, não é simplesmente o caráter das pessoas, mas o valor e o direito à integridade dos direitos delas. Dito de outro modo, isso significa que, de um lado, teríamos aqueles cujos direitos devem ser preservados e protegidos a todo custo e, de outro, aqueles cujos direitos poderiam ser violados e suspendidos, inclusive o direito de integridade física, quando se trata de garantir o exercício dos direitos dos primeiros.

Essa hierarquia moral, que se exerce na prática, não se limita às relações entre as classes sociais, de “gente e subgente”, “de supercidadão e subcidadão”, como discute de maneira brilhante o sociólogo Jessé Souza em sua obra sobre a construção e naturalização da desigualdade social no Brasil. Nos momentos de acirramento político, onde a divisão e o antagonismos dos interesses da sociedade se tornam mais visíveis, ela também se manifesta com o mesmo princípio verticalizador e de desrespeito dos direitos de uns pra justificar o exercício dos direitos de outros. Em nome do direito de ir e vir dos cidadãos de bem, dos seus carros e da volta pra casa, pode-se dispersar com violência e arbitrariedades jovens ou mesmo proibir a manifestação política, não importa quão legítima e urgente ela seja.

Em outras palavras, a ideologia do “cidadão de bem” cria uma hierarquia simbólica na qual se funda a possibilidade de projetar, de maneira tacitamente autorizada, uma sombra de exceção sobre os direitos daquelas pessoas que não fariam parte deste seleto grupo de pessoas ordeiras e obedientes, os ditos cidadãos de bem. Foi exatamente isto o que a polícia realizou contra os estudantes, militantes e trabalhadores que se manifestavam contra o aumento da passagem de ônibus na noite de quarta-feira (15/05) em Natal-RN.

Nesse sentido, a mesma sombra que desumaniza e revoga os direitos de infratores e “suspeitos”, o famigerado “bandido bom é bandido morto”, avança, também, em casos de mobilização política, sobre os estudantes e militantes; pois, rotulados como vândalos, subversivos e agitadores, eles tiveram os seus corpos  e seus direitos violados por balas de borracha, cassetetes e tapas. Com isso, a arbitrariedade, a truculência e a violência policial encontram sua justificativa no disfarce do “uso progressivo da força”, da “garantia da ordem” ou simplesmente como preservação da paz dos “cidadãos de bem”.

O que temos aqui, e o vemos de maneira recorrente no Brasil, é mais grave do que a criminalização e deslegitimação dos movimentos sociais. Trata-se do quanto, na prática, o conceito de igualdade ainda não está devidamente institucionalizado entre nós. Na sociedade brasileira, a suposta defesa dos direitos de uns – considerados pelas instituições do Estado como sendo mais legítimos enquanto cidadãos – continua a justificar a supressão contínua ou temporária dos direitos fundamentais de outros.

Essa hierarquia da integridade dos direitos cria um campo de ação em que os aparelhos do Estado, da polícia à justiça, podem agir seletivamente. O cassetete do policial e a liminar do juiz estão unidos por um mesmo consenso tácito, qual seja: o de que existe uma classe de pessoas que é mais cidadã do que outra. O mais preocupante é que essas instituições passam a agir com um poder não mais baseado nas leis e nos limites que estas impõem a sua atuação, mas sim com base nestas representações sociais que, alimentadas e potencializadas por uma imprensa irresponsável e néscia, fazem com que todos nós nos percebamos ou como cidadãos de bem ou como delinquentes, vagabundos e vândalos.

A noção de “cidadão de bem” é uma categoria que legitima violência e infrações de direitos.  É uma noção fascista. Ela classifica, relativiza e inferioriza os limites que garantem às pessoas o respeito, a igualdade e a integridade de seus direitos fundamentais. E, nesse sentido, ela é, portanto, uma noção fundamentalmente autoritária e antidemocrática.

Desse modo, é fácil compreender por que a polícia é a instituição por excelência a comprar e defender a ideologia do “cidadão de bem”. Ela é a primeira a agir sob esta caução ideológica para justificar sua truculência e arbitrariedades contra aqueles que não integram, segundo o seu juízo e preconceitos, o grupo daquelas pacatas pessoas cujo único objetivo na vida é trabalhar e voltar pra casa sossegadamente.