Por Homero de Oliveira Costa / prof. do Departamento de Ciências Sociais da UFRN
O mês de junho de 2013 deve passar para a história do país como o mês em que ocorreram as mais importantes manifestações de ruas desde o impeachment de Fernando Collor em 1992. O início das manifestações, como todos sabem, foram protestos em várias cidades contra o aumento do preço das passagens dos transportes urbanos. No entanto, à proporção que as manifestações foram ocorrendo, o espectro se ampliou. Não se tratava apenas do aumento do preço das passagens e, sim, expressão de insatisfações muito mais amplas, como os gastos excessivos para a realização da copa do mundo, contra os péssimos serviços de transportes urbanos, na saúde, educação, contra a corrupção e impunidade etc. foram portanto, insatisfações difusas e generalizadas. O aumento do preço das passagens serviu apenas como o estopim, a gota d’água.
Muito já se disse e se escreveu sobre as manifestações. Já foi lançado até um livro (“O choque de democracia: as razões da revolta”, de Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp). Do que me foi possível perceber, tenho mais dúvidas do que certezas e mais perguntas do que respostas.
Um das poucas certezas é a de que vivenciamos uma crise de legitimidade das instituições e um profundo mal-estar com a democracia existente no país. O problema central, portanto, me parece ser o da falta de legitimidade das instituições de representação. Há um esgotamento e uma descrença nelas que não é específica do Brasil, mas das democracias representativas de uma maneira geral e especialmente em relação aos partidos políticos.
Existe assim uma crise da própria democracia representativa. Essencialmente, os cidadãos não se sentem representados nem pelos partidos e muito menos pelos governos. Uma crise da representação política, visível na descrença e desqualificação do parlamento, dos partidos e dos políticos, especialmente entre os jovens. Pesquisa do Instituto Data Popular publicada no dia 21/6/2013, com 1.502 pessoas entre 18 e 30 anos, em 100 cidades do país, revelou que 75% não confiam nos políticos, nem nos partidos (e 59% também não confiam na justiça).
Essa descrença explica, em grande parte, a ausência de partidos nas manifestações e quando presentes (pequenos partidos de esquerda, como PSTU e Psol), foram rejeitados e hostilizados. Houve conflitos em diversas cidades entre militantes de partidos, com suas bandeiras, e os manifestantes. Isso ocorreu também nas manifestações na Europa e na chamada “primavera árabe”. O que revela que o problema não é específico do Brasil, é mais geral, como disse o sociólogo espanhol Manuel Castells, estudioso dessas manifestações em várias partes do mundo e que publicou recentemente um livro “Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Era da Internet”(Zahar Editora). Para ele, uma das características desses movimentos é a rejeição aos partidos, “há um desprezo geral aos partidos políticos”.
Se por um lado, é compreensível em função da baixa qualidade dos partidos existentes, isso pode se constituir num perigo para a própria democracia. Uma coisa é a falta de legitimidade dos partidos como instituições democráticas, outra é a defesa de sua extinção. Não é possível prescindir do exercício da política via partidos. Nesse sentido, é preciso estar atento para os resultados de pesquisas como a de Instituto Latino-Barômetro – que tem feito pesquisas sistemáticas sobre a democracia e os partidos na América Latina . Na pesquisa divulgada em 2011, que abrangeu 18 países e mais de 20 mil questionários aplicados, constatou que 57% dos pesquisados no Brasil, afirmaram que era possível viver sem partidos políticos(um dos maiores índices dos países pesquisados). Mas como alertou lucidamente Luís Fernando Verissimo “É preciso cuidar para não desmoralizar demais a política e os políticos” porque quem se beneficia com isso é a direita e abrem caminhos em direção às ditaduras.
Existem muitos exemplos nesse sentido, a começar da Alemanha dos anos 1920 e 1930, beneficiando a ascensão do nazismo, com todas as suas consequências. O que é preciso é melhorar a representação e os partidos e não acabar com eles.
Para isso, é necessário ampliar a democracia, que se vá além da frágil democracia representativa que temos. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos, mas participação efetiva nas decisões do poder. Essas manifestações mostraram o abismo entre governo e sociedade e teve (e continua tendo), entre outros méritos, o de acelerar a aprovação de projetos que há muito estavam no Congresso Nacional sem ser votados (como a PEC do trabalho escravo, o PLS 204/2011 que torna a corrupção crime hediondo, fim do voto secreto no parlamento em casos de cassação de mandatos etc.) e em especial, a retomada da discussão sobre a reforma política, que certamente coloca a necessidade de se repensar o processo eleitoral no país.
As eleições no Brasil, com o financiamento privado de campanhas, se transformaram em um grande mercado político e os partidos, no dizer da filósofa Marilena Chauí em artigo recente sobre as manifestações, “são clubes privados de oligarquias locais, que usam o público para seus interesses privados”. Para ela “a qualidade dos legislativos, nos três níveis, é a mais baixa possível e a corrupção estrutural e como consequência a relação de representação não se concretiza, porque vigora a relação de favor, clientela, tutela e cooptação”. Os partidos, com exceção dos pequenos partidos programáticos e ideológicos, como o PSTU e Psol, se transformaram em máquinas de disputar eleições, buscar cargos e gerir os recursos do fundo partidário e de doações para campanhas eleitorais.
Outra característica das manifestações foi à ausência de lideranças (pelo menos reconhecidas como tal) e para alguns, como o sociólogo Manuel Castells, esse é um aspecto positivo, uma qualidade do movimento cujo sucesso está em que “As demandas ressoem para um grande número de pessoas, que não haja políticos envolvidos e que não haja líderes manipulando. Pessoas que se sentem fortes apoiam uma às outras como redes de indivíduos, não como massas que seguem qualquer bandeira”.
Uma das questões que se coloca hoje é: até quando durará o fôlego das ruas? Será suficiente para mudanças substanciais na sociedade e política brasileiras? Creio que ainda é muito cedo para juízos definitivos. Sem uma organização tradicional, como os partidos, com bandeiras muito genéricas, é difícil no “calor dos acontecimentos” uma análise mais precisa e substancial do significado das manifestações e de seus desdobramentos. Concordo com o sociólogo e economista Francisco de Oliveira, que em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo, em 30/6/2013, afirmou que a ausência de direção pode impedir que os protestos tenham um legado duradouro. Para ele “uma coisa sem objetivo não se mantém por muito tempo”. Vamos ver.