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Democracia de shopping center

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A classe média e elites, que dizem ter nojo da política, são os mesmos agrupamentos que preenchem os cargos e ficam com os contratos de prestação de serviço do Estado. A lógica do ressentimento contra a política beira a esquizofrenia. Falta aquele olhar 43 no espelho. E nessa história de criminalização da política, às vezes, até da democracia, todos saem perdendo. Na medida em que as pessoas pensam diferente e tomam parte nas mais variadas áreas da sociedade de modo distinto (é bom que assim seja, não?!); é imprescindível acordar, negociar e construir consensos. Ou então procurar o outro caminho possível: o da violência e aniquilação daqueles que não se enquadram, dos perdedores da disputa.

Mais do que saber ganhar, é preciso aprender a perder e respeitar a voz soberana das urnas. Não raro, no entanto, setores da sociedade quando não levam nas eleições estabelecem um movimento de enquadrar o “povo” como alienado, sem “instrução” – uma professora da USP chamaria, num preconceito vendido como ciência, de “sem sofisticação política”. Mas numa democracia aceitar as regras do jogo é fundamental. A história está cheia de “solução fáceis”, que nos levaram ao pior dos mundos.

imagesDigo isso porque impressiona a maneira como reações não democráticas são atravessadas de considerações elogiosas e figuram como a suposta expressão de um descontentamento social tido como legítimo por alguns. Por exemplo: circula no facebook o relato de que um novo vereador do município do Natal foi vaiado num shopping da cidade e alguns mais exaltados até ameaçaram iniciar uma algazarra física. Conforme informações, ele teria saído chorando da praça de alimentação.

O fato e a alegria verbalizada nas chamadas “redes sociais” no estilo “bem feito” são sintomáticos. Pensei em checar a veracidade da história, primeiro. Porém, resolvi escrever logo de cara porque acho que, independentemente dos acontecimentos, a comemoração, o gozo, com o narrado por parte dos internautas diz tanto quanto o suposto evento.

De acordo com o que corre no facebook, o vereador foi vaiado por ter aprovado o aumento nos salários dos vereadores de R$ 15.000,00 para R$ 17.000,00. Ora, vale debulhar a revolta contra a elevação. Primeiro, o acréscimo foi votado pela legislatura anterior. O parlamentar municipal em primeiro mandato não fez parte do processo. E mesmo que ele tivesse aprovado, a reação ultrapassou o limite do razoável. Segundo, há uma suposição de que vereadores são dispensáveis. Ora, nada poderia ser mais falso. O legislativo municipal é um poder imprescindível da democracia. O papel desempenhado por um de seus membros não fica atrás daquele exercido por um integrante do ministério público, ou de um juiz. Terceiro e sem medo de errar, além de fundamental, um vereador trabalha mais do que os dois últimos profissionais citados. A agenda de um vereador é enorme – além das plenárias e reuniões infindáveis, deve ouvir a população, estudar os projetos, passar o fim de semana no contato direto com as bases, para canalizar anseios sociais, etc.

O preconceito em relação a política cega muita gente para o que deveria ser óbvio. Deve-se saber criticar uma pessoa, entretanto dentro dos canais de participação institucionalizados e, ao mesmo tempo, preservando a integridade física e moral dos indivíduos em jogo. Não é porque eu discordo de um vereador ou de algo que ele aprovou, que posso me sentir no direito de agredi-lo física ou moralmente. E o mais complicado ainda: devo separar a minha crítica a uma atuação pública de um agente (não ofensa a moral do sujeito) da criminalização de um poder democrático legítimo. Reprovar a conduta de um parlamentar, ou de vários, não pode significar a dissolução da Câmara Municipal e daquilo que ela conquistou. A discussão tem de ser para melhorá-la e não jogá-la na lata do lixo.

Antes que alguém ataque a fonte, para não debater argumentos, afirmo que não votei no vereador (e mesmo que tivesse direcionado a minha escolha nesse sentido, minha intervenção não seria menos válida). Penso que nessa escandalização da política ninguém se salva porque os espaços decisórios não vão desaparecer. Eles serão ocupados. Então, melhor que as instâncias de poder sejam preenchidas e acompanhadas pela via democrática do que por alguém que passe ao largo dos nossos desejos e desconsidere a soberania popular. Quer a gente queira ou não, o vereador foi eleito pelo voto e tem todo o direito de desempenhar as atividades legislativas, assim como a população de cobrar, mas dentro dos parâmetros de razoabilidade já elencados. Não há nenhuma virtude nos fatos narrados. Só que, possivelmente, os moralistas de ocasião de hoje serão os afiançadores dos “salvadores da pátria” de amanhã, aqueles que costumam passar cheque em branco para todo tipo de demagogo, tanto à direita, como à esquerda.