Como reação às fortes convulsões sociais pelas quais passou o Brasil nas últimas semanas, a presidenta Dilma Roussef anunciou em reunião com governadores e prefeitos em 24 de junho de 2013, dentre vários pactos, a criação via plebiscito de uma “assembleia constituinte” exclusiva para dar origem à chamada “reforma política”.
Na verdade, não se trata de proposta nova. Já há algum tempo consta do programa do PT. Basta observar este post do Blog do Zé Dirceu (http://www.zedirceu.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=18051&Itemid=7).
A solução apontada pela presidenta e pelo PT tem um propósito muito claro: cortar o nó górdio da reforma política. Superar a discussão de políticos em torno da reforma política com um golpe certeiro, uma vez que os pontos debatidos dificilmente chegarão a um consenso no Congresso Nacional.
No presente texto não analisarei as consequências, políticas, sociais, antropológicas ou estéticas dessa proposta. Outros colunistas desta Carta com certeza farão isso muito melhor do que eu. Minha discussão é apenas uma: trata-se de proposta juridicamente viável?
Não.
O Poder Constituinte é poder ilimitado. Não encontra fundamento de validade algum senão na soberania popular que o autorizou. Os paradigmas da ordem anterior podem (e com frequência são) ser ignorados pelos constituintes. Na assembleia que resultou na Constituição de 1988 debateu-se a viabilidade do retorno à monarquia em face da república. Marechal Deodoro que durma com essa. O impasse só foi resolvido via plebiscito previsto constitucionalmente anos depois.
Desse modo, a eventual constituinte de 2013/2014 não encontraria quaisquer limites à sua atuação. Ora, como obedeceria a algum ato do Congresso se não deve obediência sequer à Constituição de 1988? O que impediria essa nova constituinte de mexer, por exemplo, nos direitos civis, políticos e sociais do cidadão?
Exemplo de uma “constituinte parcial” dessa natureza foi a edição por decreto da Emenda Constitucional nº 1 à Constituição de 1967, durante o regime militar, que criou virtualmente uma nova constituição.
Uma constituinte no modelo proposto não obedece aos parâmetros da Constituição de 1988 para sua alteração via emenda. Trata-se de puro poder político superando a vontade da constituição, o que é extremamente danoso a um regime que valoriza a ideia de Estado de Direito. O Estado – e o poder popular que o legitima – estão limitados por uma Lei Fundamental: a Constituição.
Em sua obra “Força normativa da constituição”, fundamental na teoria jurídica ocidental, o autor alemão Konrad Hesse já trazia a ideia de que a eficácia das normas constitucionais depende de dois pilares: a vontade de constituição e a práxis constitucional:
“Todos os interesses momentâneos – ainda quando realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à constituição, sobretudo naquelas situações em que a sua observância revela-se incômoda. Como anotado por Walter Burckhardt, aquilo que é identificado como vontade de constituição deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos que renunciar a alguns bene
fícios ou até mesmo a algumas vantagens justas.”[1]
É que a constituição garante o respeito do Estado aos direitos individuais e às minorias, em especial ante as maiorias. Se for autorizado um desrespeito do montante proposto à constituição, abre-se um precedente. Poderemos, no futuro, criar uma nova constituinte para instalar a pena de morte generalizada, por exemplo. Há uma série de cartazes com propostas semelhantes na “primavera brasileira”. Um colega meu postou no Facebook lições de democracia para o Brasil usando o exemplo da China, literalmente.
Basta lembrar, como já assinei neste espaço, que a crucificação e o nazismo nasceram de decisões populares ao arrepio da lei vigente.
Outra perspectiva é que a Constituição de 1988 não traz qualquer impedimento à reforma política. A Constituição apenas veda a abolição das chamadas cláusulas pétreas do artigo 60, § 4º: forma federativa de Estado; voto direto, secreto, universal e periódico; separação dos poderes; direitos e garantias individuais.
Nenhuma dessas cláusulas veda a implementação de ideias discutidas nos diversos modelos de reforma política: financiamento público de campanha, voto distrital, lista aberta ou fechada, etc.
Daí se vê que a dificuldade na reforma política é isso mesmo: política. O Congresso não consegue encontrar consenso para votar a matéria.
Aí argumentam os favoráveis à constituinte parcial: passando a decisão ao povo, não cabe mais ao Congresso escolher.
Mas o povo vai escolher o que? Deverá escolher, por exemplo, os deputados da assembleia constituinte. Serão eleitos? Se forem, como imagino, quem define as regras da eleição? O Congresso. Quem elegerá esse deputado? Os mesmos esquemas eleitorais nefastos que hoje se combate. Caímos num círculo vicioso.
Os deputados constituintes, eleitos da forma que forem, estarão sujeitos às mesmas forças de pressão que atuam hoje sobre o Congresso. Apenas o nó górdio ficará mais apertado.
E sabe-se lá o que se solta quando se corta esse nó ao meio.
[1] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991, p. 21-22.