Faz mais ou menos dois anos que minha atenção, como pesquisador e como militante, se voltou aos novos modos de movimentos sociais que emergiram na cibercultura e explodiram como Revolução do Jasmim, na Tunísia. Depois da Tunísia, o movimento foi batizado de Primavera Árabe.
Comecei a participar de debates sobre o tema ainda em 2011 – o primeiro ao lado de um tunisiano e um palestino em Natal.
Não era, claro, nenhum ideólogo do movimento. Estava nele como militante, mas começava a pensar no que eles traziam de novo e significavam.
Mais de uma vez fui à UFRN entre 2011 e 2012 para falar sobre o tema.
Na abertura do curso de especialização em mídias sociais da Estácio/Fatern, em Natal, minha fala abordou o tema.
Em setembro passado foi sobre isso que falei no Encontro Nacional de Engenharia e Desenvolvimento Social. Lembro, inclusive, que ao responder sobre o sucesso do #ForaMicarla em uma pergunta feita por um estudante do Rio de Janeiro, destaquei que um dos segredos do movimento foi o fato de ser apartidário mas sem prescindir da presença dos partidos e dos movimentos sociais organizados.
Desde então sigo refletindo.
Como já disse, em setembro deve ser publicado um artigo escrito sobre o #ForaMicarla e a #RevoltadoBusao (em 2012) por mim e pela professora Graça Pinto. Além disso, em setembro, participaremos do Encontro Anual da ANPOCS com um outro artigo sobre o tema.
Tenho me convencido, diante de algumas leituras e reflexão, que o atual movimento, de aspecto catártico, experimentado no Brasil, mesmo que seja tributário dos movimentos mundiais de 2011 e 2012, se distancia deles.
Explico.
Os movimentos como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street ou o 15 M foram fortemente influenciados pela mobilização via redes sociais e Internet. Mas sem se separar de uma causa muito concreta para catalisar a luta. Por exemplo: a Revolução do Jasmim eclodiu na Tunísia quando o verdureiro Mohamed Sidi Bouazizi se autoimolou em protesto contra o fato de suas mercadorias terem sido apreendidas pela polícia do regime de Ben Ali. A blogueira Lina Ben Mhenini fotografou o fato e o postou na Internet. O povo tomou as ruas e pôs fim ao regime autoritário. Era uma ditadura e a luta foi mobilizada por um fato concreto.
O #ForaMicarla teve início com aumento de ônibus concedido pela prefeitura em janeiro de 2011.
Além disso, todos esses movimentos tinham pautas bem definidas e concretas – ainda que não exaustivas de toda a luta do movimento. Ou seja, havia estratégia para que não se pusesse tudo em jogo com risco de se perder o foco.
A volta da #RevoltadoBusao em maio em Natal foi novamente motivada pelo aumento de passagem, como havia sido em agosto e setembro de 2012. Os movimentos de São Paulo, articulados pelo MPL em junho, tiveram a mesma origem concreta.
Uma outra característica muito importante dos movimentos de 2011 e 2012 – e que representa a grande distinção dos processos em curso no Brasil de hoje – eram as ocupações.
O povo ocupou ruas e praças da Tunísia. Acampou na Praça Tahrir, no Cairo, por 18 dias. Ocupou o Parque Zucotti, em Nova Iorque, por dois meses. Ocupou a Porta do Sol, em Madrid. Ocupou a Câmara Municipal de Natal por 11 dias.
O primeiro – e tímido – acampamento do movimento atual no Brasil começou na rua do governador Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, há dois dias. Mas essa não é a regra do momento contemporâneo.
A regra são enormes marchas, com dezenas de milhares ou mais manifestantes, que muitas vezes não sabem pelo que ou contra o quê lutam e que podem gritar por qualquer coisa. Marchas que fazem o pano de fundo para que os grupos ativos mais violentos promovam ataques a prédios públicos e saques a propriedades privadas.
Esse ponto representa uma enorme diferença dos movimentos de 2011 e 2012. A chamada Primavera Brasileira, a mim me parece, é um movimento muito distinto daquele que pretende ecoar – ainda mais pelos dois anos de atraso!
Já disse isso: sou contra qualquer vandalismo, mas, mesmo sem concordar, sou capaz de entender o que significa quando um manifestante mais radical incendia um ônibus na luta contra o aumento dos preços das passagens. Há um sentido na mensagem que o ato transmite – ainda que, reitero, seja contra o ato em si.
Os movimentos de 2011 e 2012 ocupavam espaços públicos e centros de poder porque tinham uma mensagem clara a transmitir: esses lugares pertencem ao povo. A gente dizia isso claramente na ocupação da Câmara: aquela era a Casa do Povo. Por isso mesmo, os acampados cuidavam de sua limpeza e manutenção. Uma grande faxina foi realizada antes de o movimento, vitorioso, deixar o prédio. A mensagem era, no mundo árabe, em Wall Street, na Espanha ou em Natal: estamos retomando o símbolo do poder para o povo – dono de todo poder.
Os movimentos pacíficos atuais no Brasil têm sido batedores de grupos que não querem retomar o poder para o povo – querem, apenas, destruir o poder. Recorrem à violência porque não se estabelecem na relação de poder ou numa disputa de poder. Atacam, como fizeram nesta semana em São Paulo, Belém, Vitória, Fortaleza, Rio de Janeiro, entre outras cidades. Quando atacam os palácios, como fizeram no Abolição em Fortaleza diante de meus olhos na quinta-feira, também trazem uma mensagem cheia de significado político.
Para mim, deixaram de ser vândalos. São um grupo violento e armado que tem como alvo os símbolos das relações de poder que se mantém a partir do Estado Democrático. Um grupo político, ainda que possa arregimentar quem não tem qualquer reflexão política a respeito. O ataque físico e não apenas retórico, articulado, aos partidos políticos e seus militantes reforçam minha suspeita.
Incendiar ônibus para pedir redução de tarifa tem algum paralelo com depredar e incendiar palácios de governo?
As ocupações no espírito do Occupy Wall Street – que, aliás, foi articulado por grupos anarquistas dos Estados Unidos – no mesmo espírito da ocupação da Câmara em Natal, cuidavam do patrimônio do povo e significavam a retomada dos espaços de poder para o mesmo povo.
As ocupações impediam as ações criminosas no meio das manifestações. Além disso, constituíam espaços de ampla formação e formulação política. As pautas podiam ser elaboradas, gestadas, assim como os próximos passos. Há uma enorme quantidade de pautas difusas nas ruas – vi quem pedisse a pena de morte no protesto de quinta-feira em Fortaleza – assim como uma enorme quantidade de pessoas que nunca estiveram em um movimento e completamente despolitizados.
Ocupações ajudam a realizar novos modos de sociabilidade e modelos de programas políticos e de vida alternativos. Apontam para outros mundos possíveis – com a devida acumulação política e histórica.
O que vejo nas ruas são massas despolitizadas e pautas delicadas contra a democracia – como o fascismo que ataca e agride os partidos e seus militantes.
Os movimentos de 2011 e 2012 sempre foram às ruas por mais democracia (“Democracia Real Já” era o grito do Movimento 15 M na Espanha) e por mais transparência. A violência que tem manipulado as nossas marchas mira a estrutura da democracia. Ela é capaz de reduzir a democracia, não ampliá-la.
Nosso movimento contemporâneo mostra que temos uma democracia gestante por mais democracia. Como podemos impedir que o mesmo movimento contribua para que um golpe que, tenho certeza, está também sendo gestado no país nos dê, por fim, menos ou nenhuma democracia?