Notas breves sobre as particularidades do movimento de protestos no Brasil
Alipio de Sousa Filho,
(Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN)
As manifestações de rua, em todo o país, têm muitos aspectos novos como movimento social e igualmente trazem novidades para a cena política da sociedade brasileira que convém que sejam assinalados e comentados. Trata-se de um movimento surpreendente em diversos sentidos. E surpreende também porque não havia nada no cenário nacional que apontasse para a irrupção de um movimento com a dimensão que tomou. Exceto talvez o que já havia de insatisfação geral e acumulada, ao longo do tempo, com relação a vários aspectos da vida cotidiana e que afetam diferentemente setores da sociedade. E aqui há algo importante a frisar: trata-se de um movimento por questões do modo de vida, questões da vida cotidiana, algumas bem pontuais e locais.
Talvez seja o que o sociólogo francês Michel Maffesoli chama de “localismo” um dos vetores de força de todas as manifestações nas cidades brasileiras. Há algo de luta por uma vida melhor no aqui e no agora, vida concreta, vida cotidiana, dos direitos cotidianos, vivíveis na vida diária e comum. Nada de bandeiras abstratas. O próprio localismo como o pontual da vida, a vida em cada canto, a vida a ser vivida no hoje, no presente. Assim, talvez a razão de tantas palavras e reivindicações misturadas: contra a PEC 37, contra Feliciano, contra a cura gay, contra os gastos bilionários com as copas de futebol, por melhores salários, melhores transportes públicos, educação de qualidade, saúde pública no “padrão Fifa”. A consequência mais importante dos acontecimentos recentes é que, passado todos os protestos, o Brasil não será nunca mais o mesmo. Algo de novo debaixo do sol do Brasil aconteceu. Compreensão dos fatos há que ser extraída.
Eis algumas das características que se pode destacar.
Pluralidade e heterogeneidade.
Trata-se de um movimento plural, um movimento de natureza heterogênea, sem unidade na condução nem quanto ao seu pensamento: diversos grupos de pessoas, setores, tribos, segmentos da sociedade, classes, com diversas bandeiras e palavras de ordem, com motivações as mais variadas, sem uma coordenação única, e sem subordinação de uma bandeira por outra, de uma reivindicação por outra: há reivindicações por melhores transportes, qualidade dos serviços de educação e saúde públicas, direito de manifestação, contra a homofobia, contra a repressão aos jovens, a favor dos direitos indígenas etc.
Nas manifestações, cartazes e faixas, muitos improvisados, trazem todos esses temas juntos. Mas talvez um deles resuma tudo, de modo metafórico: “Por uma vida sem catracas”! O que iniciou como uma contestação ao aumento de tarifas de transportes públicos virou um grande movimento nacional, que sintetiza talvez todas as insatisfações juntas de setores da sociedade brasileira. E, repita-se, de alguns setores da sociedade brasileira: aqueles mais pobres, excluídos do acesso aos bens materiais, culturais ou da participação política, embora vivendo em outras condições sociais. Isto é, na desigual sociedade brasileira, em que pesem mudanças recentes, vidas atrapalhadas pelas catracas das desigualdades, na redução da cidadania a um privilégio de classes melhores situadas economicamente, nas catracas do conservadorismo social sediado nos parlamentos, que impedem o avanço de conquistas emancipatórias, do fisiologismo e do clientelismo políticos, da conversão da política em balcão de negócios entre empresários e políticos, entre outros exemplos.
Autonomia e espontaneidade.
Um movimento que procura dirigir a si próprio, autonomamente, sem tutela de partidos políticos ou entidades como sindicatos, Ongs etc. O movimento não aceita apropriação da luta por qualquer que seja o segmento político tradicional, o que não significa que não tenha ele um conteúdo político. Um movimento organizado por jovens, alguns deles estudantes secundaristas e universitários, dispersos pelas cidades, sem articulação nacional ou regional, que convocam os protestos de rua pelas chamadas redes sociais (FaceBook, Twitter etc.). Sem coordenação ou direção únicas, como nos modelos tradicionais dos movimentos sociais e da atuação política de partidos, que se davam a função de baixar orientações e regulações, a novidade dos protestos atuais é que inexistem as coordenações únicas, dominando a espontaneidade dos chamamentos para os atos de rua. Em eventuais reuniões nas quais se discute a organização e datas dos protestos, a palavra circula democraticamente, com longos tempos de falas, as reuniões podendo se alongar enormemente.
Pensamento fragmentado e desarmônico.
O caráter pluralista e heterogêneo do movimento faz que os protestos carreguem consigo toda sorte de manifestação do pensamento. Ao logo do pensamento crítico e contestatário, pode-se encontrar o mais grosseiro preconceito e dizeres da discriminação como contestações. Convivem ideias conflitantes ou insatisfações cujas motivações (de classe, por exemplo) são diametralmente opostas. Há manifestações contra a repressão policial e, ao lado, reivindicação pela redução da maioridade penal. Se é possível ver alguém com um cartaz que diz “Não à cura gay” (em alusão ao projeto de lei conservador do deputado-pastor Marco Feliciano), pode-se, logo em seguida, ver um manifestante segurando cartaz que diz “o SUS não cura nem virose, que dirá viadagem”. Uma pérola do preconceito que sai sem pudor da caverna da ignorância para as ruas. Embora a maior parte dos cartazes, faixas e palavras de ordem assegure certa unidade contestatária à falta de investimentos nos serviços públicos, reivindicação por serviços de qualidade “padrão Fifa”, apelos à participação da sociedade na definição e tomada de decisões ou crítica a políticos e governos como ineficientes, insensíveis, usurpadores das funções públicas, a heterogeneidade traz também consigo uma polifonia inarmônica de vozes, o que tem deixado certos analistas e observadores em estado de perplexidade e alguns cheios de desconfiança com o movimento. A fragmentação do pensamento e a mistura de bandeiras têm criado dificuldades para aqueles que, não tendo à sua disposição senão velhas categorias analíticas, cercam os protestos de suspeita.
A invenção democrática. O apelo ao alargamento da democracia.
Ainda que questionem o sistema político dominante, seus limites e adulterações (corrupção, clientelismo, patrimonialismo, fisiologismo etc.), as manifestações atuais não são batalhas contra a democracia, mas pelo seu aprofundamento, alargamento. É de fato um apelo à democratização profunda da sociedade. Tanta gente nas ruas do país, das maiores às menores cidades, declaram que, se a democracia representativa tem seu papel e certamente perdurará como sistema, não pode ser a única forma da participação política e ela própria não pode reduzir a participação política: a manifestação direta de grupos, minoritários ou não, de populares, de setores diversos da sociedade deve ser reconhecida, ouvida, incorporada. É uma luta por democracia para além do sistema da representação política. E também democracia no acesso ao que é de direito de todos, mas que permanece, na sociedade brasileira, como um privilégio de poucos.
Democracia direta, participação no debate e nas decisões através de canais que não sejam o parlamento, os partidos. Comitês populares, grupos de pressão, representantes da sociedade nos parlamentos sem que tenham que ser eleitos através de partidos (mas por categorias ou setores específicos), audiências públicas para o debate de questões de interesse público etc. Criações de alargamento da democracia. A inexistência de direção única do movimento (que alguns estão chamando de “vazio”) traz consigo a oportunidade da invenção democrática. Basta que não se ponha uma pedra autoritária sobre o movimento, de esquerda ou de direita, pela vontade de controle. Aqui talvez seja o caso de lembrar de reflexões daqueles que apontaram, em outras situações, que “bem as massas não gozam dos primeiros prazeres da rebelião, já surgem aqueles com o desejo de controlá-las” (Bakunin) ou como aqui: “tudo que é da ordem do heterogêneo e da complexidade repugna aos burocratas do saber, da mesma maneira que inquieta os burocratas do poder” (Maffesoli). O que traz o movimento são os jovens no aprendizado da participação política e também no aprendizado da sua relação com a mídia: ambígua em seus procedimentos e, por isso mesmo, hostilizada violentamente em certas ocasiões e, em outras, buscada como aliada.
Nem revolta popular pela queda de governos, nem revolução. Também não é lastro para golpes autoritários.
O movimento não é uma revolta popular pela queda de governos ou dos poderes constituídos do Brasil. Não é, assim, da mesma natureza que as revoltas da Primavera Árabe, que derrubou governos autoritários, contestou a legitimidade de governantes em países como Tunísia, Egito etc. Se questiona a atuação de governantes e políticos, não é, todavia, uma luta pela derrubada dos atuais governos (nas diversas esferas). Os ataques a símbolos do poder são metafóricos: atos que visam dizer que os poderes devem escutar às ruas, às massas, atender a seus apelos, reivindicações. Assim, trata-se de um movimento de protestos no limite do próprio sistema de representação e governabilidade que predomina no país atualmente. O movimento não é também lastro para oportunistas que, nas casernas sombrias, imaginam a chance para golpes. Sem chance para esse aproveitamento autoritário, de cunho fascista-militar.
Caráter apartidário não é recusa da política.
Fotografei em uma manifestação: “o povo unido não precisa de partido”. O que aparentemente pode ser tomado como desprezo à política, não o é. A mensagem das ruas de desconfiança com relação a partidos deve ser entendida como denúncia de modos de agir de políticos e partidos, e consequentemente do sistema político que sustentam (alimentado pelo fisiologismo, clientelismo, corrupção etc.), mas não como condenação a todos os políticos e à política como tal. Qualquer dos manifestantes indagados sobre o assunto declara esse entendimento. Sabem que os partidos não são dispensáveis, mas não podem ser únicos como atores da política. E querem outros modos de atuação dos partidos e dos políticos. As agressões e hostilizações a militantes de partidos (fato recorrente nas diversas cidades, com manifestantes vaiando militantes, tomando bandeiras de partidos, expulsando-os das passeatas), embora seu caráter autoritário e antidemocrático, devem ser entendidas como metáforas de um histórico desapontamento de diversos setores da sociedade com gestões, governos, políticos. Não se trata, como querem certos abutres da direita e do pensamento autoritário, de manifestações contra a política, como dizem, ou contra este ou aquele partido específico no poder. Não é. Nos protestos, não há clima nem qualquer sintoma que denuncie o desejo autoritário de fim da esfera política-pública, de atuação dos mais diversos atores, ao estilo e gosto fascistas. Não há.
Continua…