De repente, aos olhos famintos da velha imprensa tudo mudou. Não há mais vândalos, exceto aqueles poucos que integrariam grupelhos anarquistas radicais e partidos de extrema esquerda. O movimento passou a ser visto como composto por “bons moços”, por jovens pacíficos e que cansaram dos rumos equivocados do país. Até os famosos globais aderiram! Como um passe de mágica, o que outrora era chamado de baderna tornou-se um cortejo, uma procissão secular da democracia. Jornalistas, que até outro dia não faziam outra coisa senão criminalizar os movimentos sociais e jogar a população contra as manifestações se disseram emocionados por tão lindas e comoventes imagens. Finalmente, os brasileiros se politizaram, diziam os mesmos que antes aplaudiam a democracia não-letal das balas de borracha.
Os mais vis representantes da sanha punitiva do Estado, os trovadores da repressão policial e da ordem pública, como o senhor Alckmin, abrandaram o tom do discurso em favor da integridade dos manifestantes e do respeito pela liberdade de manifestação política. O trânsito, o engarrafamento, o direito de ir de vir e o incômodo aos “verdadeiros trabalhadores” que só querem voltar pra casa, tudo isso se tornou, de uma hora pra outra, uma questão menor, porque os jovens convenceram a todos sobre a razoabilidade e justiça de suas manifestações. Até o letrado e intelectual orgânico das camadas retrógradas do país, Arnaldo Jabor, numa prova de humildade, teve de ceder, pois não se trata apenas de vinte centavos.
Ora, o que será que ocorreu com os detratores da mudança e defensores da ordem? Crise de consciência? Iluminação?, Transformação de ideias políticas? Obvio que não. Não sejamos ingênuos, trata-se de uma nova estratégia, que, se, por um lado, não utiliza os mesmos agentes, utiliza as mesmas armas, qual seja: as armas simbólicas para impor uma representação, uma imagem, uma versão da realidade. Dessa vez, não a imagem criminalizadora dos vândalos e da baderna, mas a de cidadãos pacíficos e honestos descontentes com os rumos econômicos e com o caráter ético da gestão do país.
Em sociedades modernas e de regime democráticos, a luta política e os equilíbrios de poder das forças sociais no campo político se desenlaçam e se alicerçam numa batalha de palavras e discursos para impor, como hegemônicas, visões de mundo e representações da realidade social particulares. É nesse aspecto que os meios de comunicação, ou melhor, os grupos sociais e políticos que os controlam e se impõem socialmente como imprensa, como sendo a “voz do povo” e produzindo o registro da “realidade”, possuem uma função estratégica central na luta política, construindo os “problemas sociais e civilizatórios”, os mal-estares sociais e políticos, realizando a seleção dos temas mais “importantes” e imprescindíveis da agenda pública, etc..
A “adoção” dos movimentos e manifestações políticas recentes significa, na verdade, um conjunto de ações discursivas para construir uma nova representação social do movimento e dos protestos, particularmente de suas pautas, objetivos e reivindicações. Uma representação que seja politicamente útil aos interesses materiais e ideais da “grande imprensa” e de suas alianças políticas. A velha mídia finge adotar e embalar em seus braços as manifestações com elogios e elegias midiáticas sob a forma de reportagens e matérias supostamente favoráveis, quando, com efeito, ela visa direcionar as energias políticas heterogêneas da indignação para uma agenda de pautas que beneficie a ela e os grupos conservadores que ela apóia na luta política. Ora, o que eles pensam é mais ou menos isto: “se não podemos controlá-los nem isolá-los pela rejeição popular, se eles não se amedrontaram com a repressão policial, então, é melhor tentar direcioná-los, alinhá-los a objetivos que, também, nos beneficiem e nos protejam”.
A repercussão internacional, amplificada pela Copa das Confederações, a violência policial, que atingiu jornalistas e integrantes da classe média, e, por último, o crescimento da adesão popular e difusão dos protestos pelas capitais do país obrigaram a mudança de postura e “avaliação” da grande imprensa. Porém, isso não significa que, por conta dessa modificação inesperada e nã0-desejada de conjuntura, ela será doravante neutra ou, muito menos, aliada aos movimentos.
Não é uma mudança de atitude e de cobertura, é a construção de uma representação interessada. Nesse sentido, é posto em marcha não somente uma inflação de reivindicações políticas dispersas e tendenciosas, mas a construção de uma hierarquia entre elas por meio da visibilidade, representatividade e papel que é dado a cada uma delas no interior das manifestações. Os temas pontuais da mobilidade urbana, do direito à cidade, dos esquemas espúrios e escusos entre prefeituras, câmaras municipais e empresários do setor de ônibus, da reavaliação do pacto social entre estado, sociedade e iniciativa privada para a prestação do serviço de transporte público, as demandas por mais mecanismos de democracia direta e participação popular no processo de tomada de decisões são relegados à segundo plano em favor de pautas moralistas e generalistas, cuja teor propositivo se restringe a – importante mas não suficiente – rejeição veemente e bem intencionada; rejeição da corrupção, da insegurança, da qualidade insatisfatória e deplorável de serviços básicos como saúde e educação, etc..
O que estamos assistindo nos últimos dias é a flagrante tentativa de arregimentar o capital político e a força simbólica conquistada a duras penas pelos milhares de jovens anônimos, ativistas, militantes e estudantes para enfraquecer os inimigos políticos mais graúdos, sobretudo, o governo federal e o PT, segundo, obviamente, os interesses da imprensa e dos grupos de oposição. Não que o governo federal e o PT não mereçam ou não devam ser criticados. A questão é que a construção e o direcionamento dessas críticas devem partir daqueles que fazem organicamente o movimento e em conformidade com as pautas internas e com o debate democrático, e não de maneira alienígena, parasitária e oportunista.
A partir do momento em que as reivindicações dos protestos forem mediadas e midiatizadas pela velha imprensa, pelos Azevedos, Datenas, Jabor, Globo, inevitavelmente elas sofrerão deformações, para que sejam congruentes o mais possível com os interesses desse setor. Sejamos céticos e reflexivos, e não caiamos na hipocrisia disfarçada de bons sentimentos democráticos e progressistas da “grande imprensa”. Sensibilidades ideológicas autoritárias e elitistas e ideários conservadores historicamente enraizados e politicamente úteis aos poderosos não mudam do dia pra noite.