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“Mãe África”: Questionando o parentesco desta metáfora

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Por Stéphanie Moreira. Antropóloga.

 

Africa1África… mãe, irmã, amiga ou apenas um encontro casual frutífero? Dia 25 de maio é dia da África. No Brasil comemora-se o dia de uma saudosa mãe África caucada nacionalmente em práticas sociais, culturais e religiosas afro-brasileiras que remontam a um tempo passado, de quando africanos chegavam ao Brasil pela primeira vez, com direitos subjugados por um sistema de colonização que os tratava como mercadoria. Não era privilégio, contudo, dos que vinham para o Brasil visto que o sistema escravocrata assim como seus correlatos servis eram soberanos em grande parte do globo. A maioria dessas pessoas era vendida por outros africanos ou trocados por fumo, rum ou armamentos entre outros produtos de valor menor. Feitos escravos de guerra ou capturados pelo amplo e instaurado sistema de tráfico de pessoas no interior do continente, eram levados até a costa ocidental africana e daí negociados para imergirem forçosamente no sistema transoceânico de comércio de pessoas negras.

Até então o mundo não existia sem relações de escravidão. A construção de nosso país não fugiu a essa regra e tratou de manter esse modelo hierárquico para o estabelecimento de mais uma das colônias de plantation instauradas por países europeus sobretudo nas Américas, que vale salientar, também teve suas populações autóctones extintas, expropriadas, escravizadas ou excluídas, assim como os negros, dos bens que forem paulatinamente sendo produzidos, e dessa mais valia tão apreciada no mundo ocidental, na época pós-grandes navegações, ou simplesmente expropriados do direito básico à existência.

Nessa época não existia a noção ampla e instaurada de direitos humanos e, mesmo a França que iria dar o primeiro pontapé rumo a pensar a tríade liberdade, igualdade e fraternidade, não se mostrou receptiva a aderir ao movimento anti-escravocrata que se formava e se fortalecia na Inglaterra do século XVIII quando procurada por seus adeptos e fundadores ingleses. A África, em sua diáspora de sofrimento, permanecia subjugada, tanto nas Américas, quanto na Europa, e por que não dizer, dentro do seu próprio continente, que escolhia racional e cruelmente as etnias ou os indivíduos já distanciados de seus coletivos, aqueles que seriam moeda internacional de troca.

Tudo isso no Brasil e nas Américas de forma geral, estava representado por uma trajetória de trabalhos forçados, sobretudo na lavoura de cana de açúcar, sob uma jornada de trabalho extenuante e sob os olhares predispostos a iniciar sessões de torturas a qualquer momento das mais espúrias empreendidas a mando dos senhores de engenho. Esta representou uma das formas de trabalho mais árduas e injustas já conhecidas pela humanidade.

No Brasil, essa experiência vai ser o motor de um sentimento de pertencimento a esse país, mas com diferenciações em relações a outras partes de nossa população. E a própria história de segregação, em alguns momentos anunciada mas em outros silenciada e disfarçada, justifica que possa tratar a população brasileira “por partes”. Essa parte que viveu nos cativeiros, que fugiu dos cativeiros, que morreu nos cativeiros, que nasceu livre mas aprendeu como seus ancestrais eram tratados em cativeiro, vai construir uma forma de pensar-se e de se representar diferenciada. Desse contexto nascerão os afro-brasileiros e, dessa parte da população brasileira, nascerá o movimento político que busca reparações históricas para o trato, ou melhor dizendo, o destrato, sofrido pelas populações de origem africana neste país.

A África que veio ao Brasil era diversa, tinha vários idiomas, vários dialetos, várias etnias, várias formas de representação política, cosmológica e cultural. Não por acaso isso acontecia. Para evitar rebeliões nos navios ou em terra, após a consolidação do tráfico, se preferia não juntar negros de mesma origem. Mas as estratégias antropológicas de sobrevivência foram fortes no sentido de criar novas formas de agrupamentos e, politicamente unificados sob o idioma português, era aí que a comunicação e a interação dentro de tanta diversidade permitia a criação de links, culturais, e daí o surgimento da capoeira brasileira e das religiões afro-brasileiras como candomblé, umbanda, batuque, entre outros. As origens étnicas foram muitas. Retalhos de idioma se mantiveram, em alguns coletivos com mais vivacidade e congruência, em outros como gírias e referências esporádicas. A repressão a todas essas formas de relação com o mundo estavam sempre dispostas a intervir, e, correntemente o faziam.

Sem embargo, prosseguimos. (Já neste ponto da escrita não há condições epistemológicas que me proíbam de me identificar com as populações narradas neste pequeno artigo). Atualmente no Brasil existe uma consciência coletiva sobre um ser negro, que claramente não é o ser negro africano. Isso é evidenciado quando confrontamos as formas de ver a identidade negra dos afro-brasileiros que compartilham dessa ancestralidade calcada sobre nossa história de colonização com a forma de pensar um ser negro africano, que participa de uma nova diáspora, contemporânea e completamente diferenciada positivamente em relação aos nossos antepassados. Refiro-me aos tantos africanos, de diversos países, diversas etnias, que saem de seu continente em busca de possibilidades na área de formação profissional, sobretudo. O Brasil tem sido hoje um desses destinos, que muitas vezes não é o mais procurado, mas que é facilitado por uma série de acordos internacionais abrindo vagas em universidades públicas, sobretudo federais, para estudantes africanos.

E qual é a relação nessa ampla divagação na qual me meti? Os tais acordos internacionais entre Brasil e países africanos se aprofundou a partir do estabelecimento no Brasil de uma ampla política pública de reparação das populações negras que, inicialmente pensadas para afro-brasileiros, se fortaleceu com a inclusão dos povos africanos que tem suas justificativas para acessar tais políticas em razões contemporâneas e externas à sua política nacional muitas vezes, mas que se beneficiam desta possibilidade.

Há também outra questão, menos relacionada ao campo das políticas públicas, mas às formas de representação identitárias. Muitos africanos, não temeria em dizer a maioria deles, não se reconhece como negro a partir dos mesmos parâmetros que os brasileiros embora as formas internacionais de exclusão das populações originárias de África sejam bastante semelhantes por onde quer que se vá. Mas é compreensível a partir de que pensar a África hoje em dia quer dizer pensar uma África pós colonizações, com padrões culturais modificados imbuída de uma participação ativa nas culturas contemporâneas transnacionais, midiáticas, musicais, modísticas, etc. Pensar a África atualmente significa pensar várias áfricas contextualizadamente. A mãe África que hoje é invocada no Brasil é uma mãe brasileira, que vive na memória e na história e por essa via de pensar haveríamos que mudar a relação de parentesco presente na metáfora. Que África é essa a dos brasileiros se já não é nítida quando olhamos o atual continente africano? Até hoje quando no Brasil se pensa em África se pensa primeiramente em descendência e escravidão, em diferenciação étnica e preconceito, em candomblé, em umbanda, em capoeira, em eixos estandardizados de uma luta política nacional. Imagino que pensar em África na África e como um africano seja diverso dessa nossa concepção. A nova África que convivemos hoje vem para o Brasil por escolha própria, porque quer e almeja patamares melhores a nível pessoal e a nível de crescimento nacional, escolarização e formação profissional assim como os brasileiros o fazem quando planejam ir ‘estudar no exterior’. Os navios negreiros de hoje são muito mais os transportes coletivos que fazem linha entre periferias nas nossas cidades do que os transatlânticos contemporâneos, aviões que levam e trazem estudantes para universidades como a UFRN, por exemplo.

Esse texto não pretende desfazer entendimentos históricos de conexão entre Brasil e África tampouco pretende criar mais separatismo que conjunções, mas acredito que seja preciso lançar novos olhares sobre discursos que não se explicam mais por si só, se é que algum dia isso aconteceu à luz de um olhar mais detido sobre quaisquer processos sociais e culturais em qualquer tempo de nossa história.