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PEC da discórdia: ditadura da política ou da sociedade aberta?

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Como é bem próprio da imprensa nacional, os jornais da semana estampavam em letras escandalosas que “Comissão aprova medida que submete STF ao Congresso”. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional no 33 de 2011.

sport-constituicaoDe fato, o timing da PEC faz parecer uma reação do Congresso ao ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. A Suprema Corte tem cada vez mais suprido as lacunas legislativas que a falta de consenso do Congresso tem criado no ordenamento jurídico. Foi assim com a fidelidade partidária, com a união homoafetiva e com a interrupção da gestação de fetos anencéfalos.

Para mim, é claramente uma reação.

Contudo, será que o mérito da PEC se esvai por essa mera circunstância? Lendo o texto da proposta, observo uma série de possíveis melhorias ao sistema político-jurídico brasileiro.

Em primeiro lugar, a PEC altera o quorum para que os tribunais declarem uma lei inconstitucional de maioria absoluta para quatro quintos de seus membros. Esse primeiro ponto, para mim, é o pior. Praticamente transforma em consenso obrigatório qualquer decisão nesse sentido. Tolhe-se em boa medida a autonomia do Judiciário ao controlar a constitucionalidade das leis.

O segundo ponto é a necessidade de submissão da súmula vinculante ao Congresso. A súmula vinculante é enunciado do Supremo que, com base em reiteradas decisões em matéria constitucional, tem autoridade coercitiva sobre todo o Poder Judiciário e a Administração Pública. Trata-se de verdadeiro ato normativo editado pelo STF. Sua submissão ao Congresso tem ares de conferir legitimidade política ao ato. Afinal, todo poder emana do povo, que o exerce por seus representantes eleitos, de acordo com a própria Constituição.

A jurisprudência tradicional do STF e da maioria das cortes constitucionais no mundo era de que o Judiciário é um legislador negativo: apenas pode retirar normas do sistema, não acrescentar. Atualmente, o ativismo judicial está em voga. As cortes constitucionais têm se substituído muitas vezes aos legislativos para fazer valor normas constitucionais ante a inércia do parlamento. O direito de greve dos servidores públicos, que nunca teve uma lei regulamentadora, por exemplo, foi garantido no Brasil por decisão do STF, não do Congresso Nacional.

Destaque-se que, caso a proposta de súmula não seja apreciada em noventa dias pelo Congresso, é aprovada tacitamente. Ainda que rejeitada a súmula, a mesma perde apenas a eficácia vinculante, mantida a eficácia persuasiva comum aos demais precedentes no Direito nacional.

A terceira questão é a submissão das decisões do Supremo que declarem a inconstitucionalidade material de emenda constitucional ao crivo do Congresso.  Nunca é demais rememorar que o Poder Constituinte derivado, o poder de reformar a Constituição, foi deferido ao Congresso, não ao Judiciário. É o Legislativo, inclusive, o detentor da representatividade popular. Assim, a negativa pelo STF de reforma à Constituição, levada ao Congresso, também dota a medida de alta legitimidade democrática.

Contudo, o mais impressionante é a solução de um eventual impasse entre STF e Congresso. Veja-se:

 

“§ 2o-A As decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição Federal não produzem imediato efeito vinculante e eficácia contra todos, e serão encaminhadas à apreciação do Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à decisão judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta popular.”

 

Caso o Congresso discorde da decisão do Supremo que declare a inconstitucionalidade material de emenda constitucional, a questão é levada a consulta popular. Trata-se de legítima intervenção decisória da população no processo de controle de constitucionalidade. É nada menos que o aprofundamento da abertura da Constituição preconizado por Peter Häberle.

O referido autor, em sua obra “Hermenêutica Constitucional”, prega que a Constituição deve ser interpretada por quem a vive: a coletividade pluralista que ele chama de sociedade aberta. Destaca Häberle que:

 

“existem muitas formas de legitimação democrática, desde que se liberte de um modo de pensar linear e ‘eruptivo’ a respeito da concepção tradicional de democracia. Alcança-se uma parte significativa da democracia dos cidadão (Bürgendemokratie) com o desenvolvimento interpretativo das normas constitucionais. A possibilidade e a realidade de uma livre discussão do indivíduo e de grupos ‘sobre’ e ‘sob’ as normas constitucionais e os efeitos pluralistas sobre elas emprestam à atividade de interpretação um caráter multifacetado. Teoria de Democracia e Teoria de Interpretação tornam-se consequência da Teoria da Ciência. A sociedade é livre e aberta na medida que se amplia o círculo dos intérpretes da Constituição em sentido lato.”[1]

 

No fim das contas, tenho minhas dúvidas sobre a validade jurídica dessa emenda. Contudo, em um balanço de prós e contras, a validade política é clara. O monstro não é tão feio quanto se pinta.


[1] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental das normas constitucionais. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2002, p. 39-40.