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A opção pelo crime

O que o assustador aumento de 1000% no número de homicídios de crianças e adolescentes em Natal em menos de dez anos tem a dizer sobre as nossas políticas públicas e ações governamentais voltadas especificamente para os nossos jovens? Simplesmente que não há, e não havendo – e sem qualquer perspectiva de haver -, a tendência é que um ainda maior número de jovens sejam chacinados nos próximos anos, seja pelas mãos da polícia, do tráfico de drogas e, principalmente, pelos verdadeiros motivos geradores do mórbido amontoamento de cadáveres juvenis que, antes da sua putrefação, padecem exalando vida e juventude, lamentável e precocemente interrompidas sem que isso gere muita comoção na sociedade como um todo: a omissão do Estado em prestar amparo sócio-assistencial e serviços públicos essenciais à população mais carente, serviços que garantam uma vida digna que não seja ceifada por acertos de contas e execuções sumárias travestidas nos odiosos e reveladores autos de resistência.

São desnecessários quaisquer dos abundantes dados de ordem estatística para concluirmos que não só em Natal, mas em qualquer lugar do Brasil, a maioria destes jovens é composta por negros e pobres – o que revela o caráter higienizador de suas mortes – do sexo masculino residentes em áreas periféricas dos grandes centros urbanos, cruelmente alijados desde a mais tenra idade dos seus mais fundamentais direitos como saúde, educação, cultura e lazer; seu primeiro contato com o Estado costuma ser exatamente por meio da polícia, da internação, da prisão preventiva e da violência arbitrária. De resto, tudo lhe foi negado por esse mesmo Estado, que reforça seu aparato de segurança pública para reprimir os frutos da sua própria omissão.

Mas há quem discorde, acreditando que a inserção no mundo de crime trata-se de um problema de natureza eminentemente moral e individual. O sujeito, jovem ou não, numa amena e ensolarada tarde de abril, sentado à beira da piscina de sua casa lendo as páginas amarelas de seu semanário favorito, faz deliberadamente a decisão de trilhar pelas sinuosas veredas da criminalidade, assim como da mesma forma o faz aquele jovem, filho mais velho de uma mãe solteira, residente num puxadinho que, longe de qualquer equipamento urbano, é situado estrategicamente no olho de um emaranhado de bocas de fumo em permanente situação de beligerância, disparando gentilezas que varam diariamente as paredes de sua residência.

Há sim o componente de facultatividade nos rumos que qualquer pessoa toma em sua vida. Mas, ignorar os fatores exógenos (e endógenos) a essa escolha – completa ausência de perspectivas e de oportunidades, dependência química, falta de referências profissionais, situação de urgente vulnerabilidade e miserabilidade, imediata necessidade de buscar meios para sua sobrevivência, falta de acesso a equipamentos públicos, promessas de imediata ascensão social e suprimento das suas prementes necessidades por meio de atividades criminosas, etc – é reconhecer o absurdo de que o Estado presta sim suas obrigações constitucionais de forma satisfatória e eficiente, garantindo oportunidades a todos os que não tem recursos para comprá-las. Se tais fatores não influem sobremaneira no livre-arbítrio (uma falácia sem tamanho das democracias liberais burguesas), a autonomia de vontade passa a ser ente absoluto e intocável, ponto já superado da Escola Clássica da Criminologia.

É fazer conclusões estapafúrdias como a de que as chances de um jovem abastado, que cresceu meio a um estabilizado núcleo familiar e estudou em tradicionais colégios particulares de sua cidade, tem as mesmas possibilidades de se tornar criminoso que um jovem pobre, sem-teto, drogadito, com pai ausente e mãe alcoólatra e permanentemente vilipendiado em sua dignidade desde o seu estado uterino. Pior: é reputar à repressão, e somente a ela, a melhor e única forma de combater a criminalidade.

Se a violência urbana é efeito das puras e escorreitas vontades individuais em trilhar pela delinquência, estranha o fato de ser ínfima em áreas de IDH alto e alarmantes em localidades cujo IDH é vergonhoso. Provavelmente pelo fato de pobres e negros terem uma atávica tendência à criminalidade, obviamente (Lombroso vibra em seu túmulo). Afinal, ninguém mandou não optarem por serem “cidadãos de bem”, segmento blindado de abordagens policiais truculentas e execuções sumárias. Merecidamente, claro.