Há teses que absolutamente não se sustentam. Porém, uma afirmação, quando muitas vezes propalada a partir de dados enviesados – às vezes inexistentes -, ganha verniz de verdade.
Uma das (pseudo) críticas capitais contra o PT diz respeito a sua suposta atividade de aparelhamento do governo federal. Nessa perspectiva, o Partido dos Trabalhadores estaria enchendo a máquina com filiados, através da indicação dos ditos cujos para cargos de confiança de livre provimento – o que não se submete a um concurso público.
A revista veja, mas também os partidos de oposição num bate bola, fazem discursos inflamados contra o crescimento dos tentáculos da agremiação. No final, uma comparação não plenamente verbalizada de fundo com o partido único leninista soviético.
Se quisermos olhar para os fatos, no entanto, veremos que tudo não passa de tempestade em copo dágua. Apesar de não ser o primeiro que desmente a retórica (me recordo de um antigo texto veiculado pelo IPEA), foi publicado recentemente um estudo na conceituada revista novos estudos cebrap, um dos mais importantes periódicos acadêmicos da América Latina, que trabalha dados reais.
Serei bem esquemático:
01) O governo federal conta com 21 mil cargos de confiança DAS, o único que a nomeação não se dá por concurso público;
02) Há 538.143 servidores concursados. Portanto, os cargos de comissão representam menos de 4% do efetivo.
03) Dos 21 mil parte significativa deve ser preenchida por gente indicada pelos partidos que compõem a coalizão, mas deve fazer parte da burocracia estatal concursada. A lei foi aprovada por Lula em “Em 2005, o presidente Lula editou um decreto exigindo [Não foi FHC] que 75% dos cargos de DAS dos níveis 1 a 3 e 50% dos cargos de nível 4 deveriam ser ocupados exclusivamente por servidores de carreira.” No caso, pode existir a opção política, entretanto deve se processar entre aqueles que já são concursados.
04) Os demais cargos são mais diretamente distribuídos a partir da lógica do presidencialismo de coalizão. O PT nomeou 913, o PMDB cerca 400 e por aí vai. Em estados democráticos, o partido QUE GANHA A ELEIÇÃO indica mais.
05) Destruindo a tese de que o comissionado entra e não sai mais (a estória de criar raízes na máquina), quase 60% dos cargos de confiança, mesmo sendo do PT, foram alterados com Dilma. Há uma alta rotatividade, que traz o efeito potencialmente positivo de oxigenar politicamente a burocracia e o potencialmente negativo de se perder na questão da expertise.
06) O número de cargos de livre provimento quase se manteve inalterado de FHC (cerca de 20 mil) em relação a Dilma (21 mil). O pequeno crescimento pode ser justificado pelo incremento da máquina até pela necessidade de acompanhar a evolução da sociedade, que se diversificou num curso de mais de 10 anos de diferença. Correto?
07) O que existiu significativamente foi a elevação de servidores CONCURSADOS (até para implementar, de fato, uma Estado mais próximo de uma social-demcoracia, diminuir terceirizações, reequipar universidades, etc) em que pode entrar um do PT, como também do DEM, PR, apartidário, antipartidário, etc.
08) Todo o suposto “aparelhamento” feito pelo PT no quesito cargos de confiança de livre nomeação, distante da seleção por concurso público, representa 0,1% da burocracia estatal federal!
Minha conclusão: é em parte por causa de discursos vazios como o que foi mostrado acima que a oposição não consegue ganhar os corações e mentes dos brasileiros e que Dilma segue com fortes chances de se reeleger.
Estudo completo veiculado na revista acadêmica “Novos estudos cebrap”:
A rotatividade dos servidores de confiança no governo federal brasileiro, 2010-2011*
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002012000300004&lng=pt&nrm=iso
Sérgio Praça; Andréa Freitas; Bruno Hoepers
Parte retirada do artigo que comprova o que eu disse acima:
Os cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) foram fruto da reforma administrativa iniciada em 1967, sendo formalizados em dezembro de 1970. Dois anos depois, eles foram divididos em duas categorias: direção superior e assessoramento superior. São também separados em níveis de 1 a 6, sendo que salário e atribuições aumentam progressivamente. O funcionário DAS-1 ganha no mínimo 2.115 reais, enquanto o DAS-6 recebe ao menos 11.179 reais. Esses servidores, especialmente os de nível 4 a 6, têm acesso privilegiado à informação governamental e atuam sobre a hierarquia no sentido de facilitar, controlar, influenciar e implementar decisões.
O entendimento geral é que a distribuição dos cargos comissionados obedece à lógica do presidencialismo de coalizão. O presidente eleito, para conseguir maioria no Congresso, comporia uma coalizão na qual trocaria pastas ministeriais por apoio no parlamento. Supõe-se que, para além do cargo de ministro, o presidente distribui certo número de cargos na burocracia entre os partidos aliados13.
Há cerca de 21 mil funcionários DAS em um universo de 538.143 empregados do Executivo federal – quase 4%. Mas, ao contrário do que poderíamos imaginar, apenas 13,6% dos cargos DAS são ocupados por filiados a partidos14. Considerando apenas os cargos DAS-6, os mais importantes, esse percentual sobe para 33,3%.
São filiados ao PT 913 servidores em cargos de confiança, um total de 31% dos DAS com filiação partidária. Trezentos e noventa e oito, ou 12,94%, são peemedebistas. O restante é dividido entre os demais partidos. Considerando apenas a “elite do poder” – os DAS mais importantes, dos níveis 4, 5 e 6 -, a vantagem pende para os petistas. Desses funcionários, 48,74% são filiados ao PT, 9,77% ao PMDB e 6,43% ao PDT, com outros partidos logo atrás, variando entre 4% e 2%.
A presença de partidos na burocracia governamental de alto nível pode ser uma evidência contra o argumento de que “os partidos foram esvaziados em seu papel de agregar demandas e transmiti-las às instâncias de formulação de políticas. […] Tornaram-se tributários do poder estatal, destituídos que foram de funções governativas e, portanto, de capacidade efetiva de influir no processo decisório”15.
[No parágrafo anterior, ele está apontando como positiva uma pequena quantidade de cargos de confiança, que pela alta rotatividade e que ingressam com a mudança de gestão, oxigena a máquina. Os autores vão defender mais adiante o que eu defendi em artigo anterior na carta potiguar].
Durante o governo FHC, os ministros eram responsáveis pelo preenchimento dos cargos em comissão de DAS 1 a 4. Os níveis 5 e 6 podiam ser escolhidos diretamente pelo presidente, mas não há evidências de que este se envolvia nas escolhas de cargos de confiança além dos secretários-executivos dos ministérios (ocupantes de cargos NES – Natureza Especial)16. A partir de junho de 2003, o ministro da Casa Civil, na época José Dirceu, passou a ter competência para escolher os funcionários que ocupariam os cargos de DAS. Dois anos depois, o presidente Lula editou um decreto exigindo [Não foi FHC] que 75% dos cargos de DAS dos níveis 1 a 3 e 50% dos cargos de nível 4 deveriam ser ocupados exclusivamente por servidores de carreira.
Apesar de esforços recentes para entender a alta burocracia brasileira, especialmente os DAS dos níveis 5 e 617, muito pouco se sabe sobre a dinâmica interna desses cargos e os possíveis determinantes das mudanças na composição da burocracia. Vale frisar que embora o desenvolvimento teórico de estudos sobre a burocracia no Brasil seja incipiente comparado ao norte-americano, por exemplo, empiricamente não estamos mal. Estudos recentes nos Estados Unidos ainda analisam o posicionamento ideológico de ministros18 e da burocracia19 através de surveys.
Por que analisar a rotatividade dos servidores de confiança especialmente? Esses são, sem dúvida, os principais cargos da burocracia do governo federal, respondendo apenas aos ministros e, algumas vezes, aos secretários-executivos das pastas ministeriais. Nem todos os órgãos ministeriais possuem cargos DAS, mas tê-los indica relevância e prestígio para a burocracia20. São, também, os únicos cargos de “livre provimento” – ou seja, que podem ser ocupados sem concurso – no governo federal, com as ressalvas já explicitadas acima.
De acordo com a literatura, a rotatividade no serviço público pode ser boa por três principais motivos. O primeiro é o de fazer circular novas soluções para problemas existentes, trazendo indivíduos de outra burocracia ou mesmo de fora do serviço público para oxigenar as ideias em torno de assuntos que cabem na jurisdição do órgão ministerial21. É sabido que a falta de circulação de novas ideias e de debate público sobre temas próprios da burocracia faz regimes ditatoriais sofrerem com problemas que poderiam ser de fácil solução. Ditaduras não acolhem novidades, mas sim matam seus proponentes, como o engenheiro russo Peter Palchinsky22.
O segundo motivo pelo qual a rotatividade de burocratas pode ser boa é para evitar o compadrio destes com lobbies ilícitos23. Outro argumento importante a favor da rotatividade é o de esta ser um corretivo à incerteza inerente às relações de delegação entre políticos e burocratas24. Quando o chefe do Executivo nomeia um ministro ou um servidor DAS para seu posto, não se sabe como o nomeado irá se comportar. É possível que um ministro do PMDB proponha políticas mais à direita do que o governo do PT deseja; é possível que um funcionário DAS-5 do Ministério do Meio Ambiente persiga políticas indesejadas pela presidenta do PT. São exemplos fictícios, mas plausíveis, dos riscos inerentes à delegação político-burocrata em democracias25. A demoção de ministros ou burocratas “hostis” pode corrigir os rumos do governo, reajustando os objetivos dos órgãos governamentais às políticas desejadas pelo chefe do Executivo26.
Há também bons argumentos contra a rotatividade de funcionários, todos de alguma maneira ligados à ideia de que a alta rotatividade afeta negativamente o desempenho do serviço público. Isso ocorreria porque a alta rotatividade pode: i) permitir que se perca o expertise organizacional e temático de burocratas especialistas em certo assunto27; ii) dificultar a implementação de avaliação do desempenho do serviço público28; iii) aumentar os custos de monitoramento da burocracia por parte do chefe do Executivo, pois monitorar novos atores é mais difícil do que monitorar atores com os quais presidente e ministros convivem há mais tempo29; iv) desperdiçar a experiência dos burocratas com redes informais de poder na área em questão30; v) tornar órgãos com rotatividade alta demais pouco atraentes para servidores mais qualificados31.
Diversos autores tratam dos determinantes da rotatividade de gestores locais32, ministros em parlamentarismos33 e servidores nomeados pelo presidente norte-americano34. Entre os fatores que podem afetar as taxas de rotatividade estão escândalos de corrupção35, ambiente e política organizacional36, baixos salários para servidores públicos comparados a posições equivalentes no setor privado37 e discordância em torno de políticas substantivas entre o presidente e o Legislativo38.
Neste artigo, dois argumentos orientam nossas hipóteses sobre a rotatividade dos servidores de confiança no Brasil. O primeiro é o de que a eleição de um novo presidente, mesmo que seja do mesmo partido que o anterior, motiva mudanças na burocracia. Isso ocorreria porque cada presidente tem objetivos políticos diferentes e um mandato específico, conferido pela maioria do eleitorado, para perseguir certos resultados em vez de outros. O segundo argumento é o de que mudanças na composição da burocracia são motivadas por escândalos de corrupção. Uma vez associados a atos corruptos, órgãos ministeriais puniriam os servidores de confiança.
Antes de apresentar as hipóteses, cabe uma breve explicação metodológica. O Portal da Transparência do Governo Federal (www.transparencia.gov.br), mantido pela Controladoria-Geral da União desde novembro de 2004, disponibiliza uma lista completa dos servidores do governo e os órgãos ministeriais nos quais estes trabalham39. Em abril de 2011, havia 326 órgãos nos quais funcionários do governo federal trabalhavam. Cento e um eram órgãos de governos municipais e estaduais para os quais servidores federais haviam sido transferidos; 110 eram órgãos sem jurisdição nacional, como universidades federais e centros de pesquisa; 14 eram órgãos já extintos, associados a nomes de servidores específicos na tabela do governo por motivos de pagamento; 10 eram agências reguladoras com função mais fiscalizadora do que de policymaking; 91 eram órgãos que consideramos, de fato, como sendo do governo federal e responsáveis por políticas de alcance nacional40.
Nem todos esses, no entanto, contavam com servidores do tipo DAS, já que há outras maneiras de promover funcionários e dar a eles responsabilidades maiores do que para outros, como através DAS “funções gratificadas”41. Os quinze órgãos ministeriais sem servidores DAS foram excluídos da análise42, bem como os sete que não contam com servidores DAS de nível 643. Analisamos, assim, 69 órgãos do governo federal, todos elencados na tabela 1 do anexo.