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50 anos: Paulo Freire e as “40 horas de Angicos

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imagesQuando refletimos sobre a educação brasileira, consideramos necessariamente o legado de Paulo Freire e a sua chamada Pedagogia do Oprimido, que nos convida a pensar seriamente sobre o papel dos sujeitos envolvidos na relação escola-sociedade. Porém, ainda hoje prevalece que a crença de que a escola boa é aquela que mais aprova para o vestibular e que mantém a cultura do silêncio e de neutralidade diante do mundo.

Estamos diante das recentes comemorações dos 50 anos da experiência intitulada “As 40 horas de Angicos”, em que Paulo Freire e sua equipe de educadores alfabetizaram 300 pessoas em 45 dias. Contudo, o que mais chamou atenção foi o método utilizado para tal, inusitado e revolucionário para aquele contexto sócio-político muito tenso, alimentado pela bipolarização EUA x URSS (Guerra Fria).

A equipe de Paulo Freire recolheu expressões comuns do vocabulário da cidade para poder alfabetizar pessoas conforme sua presença e olhar diante do ao redor. Foram utilizadas palavras como trabalho, luta, cidadão, povo, que ao mesmo tempo serviam para alfabetizar como também serviam para despertar o senso crítico diante do mundo em que os mesmos estavam inseridos.

Conforme Paulo Freire, a “leitura do mundo” precede sempre a “leitura da palavra”. Não bastando apenas escrever as palavras, mas criar reflexão em torno das mesmas.

As usuais expressões “Eva viu a uva”, “Felipe passeia no jardim” e “Thiago vai de avião” em nada se relacionam a realidade destes alfabetizandos, que não tinham acesso à uva, suas casas humildes não possuíam jardim e nem iriam de avião para lugar nenhum.

Paulo Freire chamava de “educação bancária” a prática em que os conteúdos (que não tinham quase nenhuma relação com o cotidiano dos sujeitos) são apenas “depositados” na cabeça dos alunos passivos, acríticos e “neutros”, diante de um mundo em que os mesmos, inseridos como objetos falantes, eram reprodutores da sociedade vigente.

O objetivo de sua pedagogia era bem claro: ajudar o educando a se ajudar e estimulá-lo a exercer papel ativo diante da realidade. Tal objetivo era bastante antagônico ao que até então se praticava nas escolas brasileiras.

Sobre a relação entre educadores e alunos com o mundo que os rege, Freire afirma: “Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade”.

Na pedagogia de Paulo Freire, o professor deixa de ser um mero transmissor de conhecimento e único detentor do saber para se tornar um estimulador e catalisador dos saberes das rodas de cultura. O educador tem plena consciência de que não existem saberes “eruditos” e “inferiores”, mas saberes diferentes! Pois Chopin e Van Gogh serão igualmente bem vindos, assim como Pífanos de Caruaru ou Mestre Vitalino. Todas as artes devem ser inseridas em nossa formação, sem a comum hierarquização cultural daqueles que detém o poder do saber.

Não é possível abordarmos a experiência do método de Paulo Freire sem refletirmos o contexto político dos primeiros anos da década de 1960, em que, no Brasil, existia uma intensa radicalização provocada pelos embates “Direita” e “Esquerda”, sopros da bipolarização EUA x URSS.

Os setores mais conservadores da sociedade brasileira temiam qualquer tipo de revolução que alterasse as posições e sociais e os grupos de esquerda, muito influenciados pelos desígnios soviéticos e pela Revolução Cubana, estimulavam as massas e pressionavam o então presidente João Goulart a fazer reformas de cunho popular. Mas, ambas as partes (Esquerda e Direita) não tinham muito apreço pela democracia.

A partir do Golpe Militar (apoiado e sustentado pelos EUA e por grupos civis conservadores) de 1964, tudo que usasse a expressão “povo”, “pobre”, que não reproduzisse os hábitos e cultura desejados pelos conservadores e que simplesmente estimulasse a pensar,era considerado comunista. No caso de Paulo Freire, que foi preso e banido do país, o intitularam de bolchevique!!!

Importante refletir que um dos objetivos da pedagogia de Paulo Freire é contribuir (através da alfabetização) para a formação de cidadãos autônomos, sujeitos ativos e críticos diante da sociedade.

Por tais características de sua pedagogia, Paulo Freire também seria banido da URSS de Stalin, da China de Mao Tsé Tung e de Cuba de Fidel Castro. Os regimes fascistas (sejam eles representados por esquerda ou pela direita, em suas diversas camuflagens e retóricas) sempre tiveram horror a expressões como: autonomia, individualidade, senso crítico, coletividade.

A instituição escolar é um mero instrumento de reprodução dos desígnios da cúpula fascista e totalitária, que necessita apenas de rebanhos domesticados, seguidores fanáticos, massa de manobra para obedecer. Sendo banidos ou exterminados aqueles que estimulem a pensar, os “anormais” ou “contrarrevolucionários”.

Logo nos primeiros anos do Golpe Civil-Militar, os conservadores utilizaram o braço armado dos militares como ferramenta para fazer uma “faxina”; prendendo, torturando e banindo do país cientistas, pesquisadores , artistas, educadores e todos aqueles que estimulavam a pensar (Milton Santos, Josué de Castro e Paulo Freire, por exemplo).

Entre tantas obras pedagógicas, as de Paulo Freire também foram consideradas subversivas e proibidas de serem lidas.

O pensamento conservador, “neutro”, acrítico, a “moral e cívica” e prática tecnicista tomaram conta do universo educacional brasileiro enquanto durou o regime ditatorial.

Paulo Freire teve sua vida monitorada (vigiado de perto pelo SNI) pelos órgãos de informação até 1990 (mesmo que o regime militar tenha terminado em 1985). Por este motivo, a Comissão de Anistia tomou a decisão (em 2009) de reconhecer a sua condição de anistiado político post-mortem.

Paulo Freire faleceu aos 76 anos, em 1997.

A emissora que muito contribuiu para a sustentação e manutenção da ditadura militar, em seu famoso telejornal noturno, no comunicado da morte de Paulo Freire, sequer possuía imagens deste educador em seus arquivos, expondo “imagens cedidas pela TV Cultura”.

Em dias atuais, a pedagogia de Paulo Freire é muito pouco praticada, mas seu legado e as importantes experiências que foram postas em prática no contexto mencionado nos servem de ponto de partida para a reflexão sobre o sistema educacional brasileiro. Projetos de natureza diversificada (teatro, psiquiatria, música, etc) de extrema relevância para nosso país foram elaborados e praticados com influência de sua pedagogia, que nos ensinou que aprender tem que ser uma aventura criadora.