Não é fácil pensar objetivamente a questão da redução da maioridade penal. Sobretudo, porque quando ela vem à tona sempre vem acompanhada de forte carga emotiva e política. De um lado, os sentimentos de perda, pesar e revolta de parentes e amigos que perderam algum ente querido de forma trágica e estúpida; vidas ceifadas que revoltam e amedrontam à sociedade. De outro, temos os discursos políticos da direita e da esquerda que mais guerreiam entre si do que pensam soluções concretas. Simplesmente pensar que o endurecimento das penas e a redução da maioridade penal resolvem o problema é passar por cima e ignorar a gênese social e psicológica que conduzem os jovens até atividades ilegais e infracionais. Porém, embora seja verdadeira a tese segunda a qual problemas sociais não são resolvidos por meio da repressão e da punição, permanecer unicamente martelando sobre os efeitos – reais e decisivos – da desigualdade social sem agir propositivamente é ficar dando voltas no problema, adiando sempre para o médio e longo prazo as possíveis soluções.
Não tenho soluções concretas de curto prazo. Talvez não existam em absoluto. Não sei. O que posso fazer aqui, como sociólogo, é construir uma reflexão sobre as razões pelas quais reduzir a maioridade penal enquanto medida para resolver ou atenuar os índices de violência no Brasil não dá conta do problema, assim como apontar as contradições de tal proposta.
Antes das críticas, convém ressaltar que a insistência e o clamor por mais rigor punitivo e penal se inserem num pano de fundo político legítimo, o qual atesta um duplo fracasso. Primeiro, a própria ineficiência do poder público na prevenção e combate da violência, e, segundo, a carência de projetos progressistas – de esquerda – consistentes em matéria de segurança pública. É este duplo fracasso que alimenta às aspirações conservadoras de “Estado Penal”, isto é, de um Estado com prisão perpétua, pena de morte, redução da maioridade e ações mais repressivas.
Dito isso, prossigamos. Em todo esse debate há um fundo emocional bastante perigoso, o qual, de modo algum numa sociedade de direito racional, pode ser elevado e tomado como base de julgamento e de elaboração das leis. Entre outros aspectos, esse fundo emocional possui um viés de classe, e que retoma o velho tema do controle social das “classes perigosas e delinquentes”. A redução da maioridade penal é uma peça numa estratégia maior de controle social sobre as classes populares.
Nesse sentido, não é por acaso que tal proposta punitiva sempre reapareça e se fortaleça quando de episódios trágicos envolvendo as camadas médias e alta da sociedade – afirmar isso não significa dizer que as classes médias e alta tem de estar à mercê da violência e dos crimes violentos. Não. O que estou criticando é o uso político e emocional da violência que esses estratos sociais sofrem e a seleção ideológica que aí opera-se.
A redução da maioridade é tratada como uma medida de proteção dos “bem nascidos”, “pagadores de impostos”, “cidadãos de bem” que tem bens à perder contra os desvalidos, a “gente diferenciada”, os “jovens perigosos da periferia”. Enquanto a violência, os assaltos e assassinatos permanecem nas periferias, nas vielas, nas paradas de ônibus, nos bares, praças e halfs mal iluminados, ou seja, naqueles lugares que a classe média e alta não pisa e não lembra, nada de pensar intervenções concretas em segurança pública, em medidas urgentes e endurecimento das leis. À depender da classe social e da região, há mortes que comovem e geram mais solidariedade “pública” e pânico social do que outras. A vida, numa sociedade desigual, não possui um valor simbólico homogêneo, isto é, a vida como bem inegociável e sagrado não é um atributo e um direito natural estendido a todos os indivíduos e classes de pessoas. A integralidade e a sacralidade da vida, no Brasil, são bens civilizatórios desigual e seletivamente distribuídos, por isso temos mortes mais mudas e “apagadas”, que se perdem nas sombras das luminárias precárias e nas estatísticas frias, não são capturadas pelas câmeras dos sistemas de segurança, não causam comoção social, nem mobilizam as instituições em seu favor, somente as lágrimas dos parentes e amigos lembram de que ali se esvaiu algo de sagrado. Nossos homos saceres e o processo de sacralização da vida na sociedade brasileira estão referidos a uma dinâmica estrutural e histórica que o sociólogo Jessé Souza chamou da “construção social da subcidadania” entre nós.
O problema reside quando os crimes violentos escapam das muretas dos bárbaros sociais e invade os condomínios, os apartamentos e as praças das áreas “nobres” da cidade. Quando deixa de atingir os “sem futuros” e resvala nos jovens promissores, com futuro e capazes e destinados a contribuir com à sociedade. Nesse momento, as câmeras e empresas de segurança privada que monitoram as ruas e as casas não são mais suficientes. É preciso mais; é preciso vingança por tamanha blasfêmia social. E esta vingança assume a forma de uma “contenção punitiva” das crianças e adolescentes – isto é, dos filhos das camadas precarizadas, subproletárias e desvalidas -, pois estes formam o estrato “protegido” e resguardado dessas camadas – pelo ECA, pela maioridade penal e que urge controlar social e penalmente.
O efeito principal da proposta de redução da maioridade penal não é outro senão o de saciar o desejo social de vingança e de controle social pela punição. Porém, nem a vingança nem a punição atacam as raízes do problema da violência e da criminalidade. Pelo contrário, acirra o sentimento de que o Estado é uma instituição hostil aos mais pobres, sobretudo contra os jovens.
Não é o medo de ser punido e de ir preso que fará com que adolescentes, acostumados e violentados com todo os tipos de ameaças, medos e desesperanças, decidam de uma hora para outra não entrar ou sair da “vida criminosa”. Ora, se observamos as taxas de homicídio do Mapa da Violência constataremos que esses jovens são as principais vítimas de assassinato. Isto significa que muitos dos adolescentes infratores já assumiram o risco de perderem suas vidas de forma violenta e abrupta. Se nem a morte prematura e violenta assusta, não será a prisão que fará isso.
O erro aqui é generalizar o cálculo sobre a impunidade como se este fosse uma variável significativa para todos os tipos de infratores e criminosos. Ora, quem toma as chances de ser punido como variável significativa no cálculo da ação criminosa são aqueles indivíduos que possuem, ou melhor, adquiriram um forte senso prospectivo orientado para o futuro – crimes de colarinho branco, corrupção, etc.. Em outras palavras, que se preocupam e planejam o futuro. Não é o caso de adolescentes assaltantes ou envolvidos com o tráfico de drogas. Estes enveredam pelos caminhos perversos do crime em busca de respeito, status e reconhecimento no grupo; bens simbólicos inscritos num horizonte presente e os quais eles não conseguiram alcançar em outras esferas como a educação, o trabalho, a família.
Não são apenas as mortes e reações morais de indignação que são socialmente seletivas e silenciadas, expondo todo o nosso déficit normativo no tocante ao valor da vida como bem sagrado e inviolável. O discurso do recrudescimento penal somado à indiferença social das classes médias silenciam, escamoteiam e restringem um conjunto de outras questões fundamentais na discussão sobre violência e seu combate: a proteção e inclusão integral de crianças e adolescentes pobres no Brasil, a reestruturação das condições do sistema carcerário, a não-aplicação plena do ECA, ampliação e maior eficácia nas políticas públicas direcionadas para a juventude nas temáticas de lazer, inclusão social, preparação profissional e reintegração social de egressos, projetos de prevenção da violência nas escolas e regiões mais violentas, mapeamento preciso das regiões com maior incidência de crimes violentos, etc..
Sem discutir aprofundadamente esses temas, perdemos algo de essencial, qual seja; as condições de possibilidade e de reprodução do comportamento infrator. Em termos unicamente de segurança pública, o efeito perverso e nefasto do discurso de redução da maioridade penal é que ele apaga e minimiza fatores essenciais na reprodução da dinâmica do crime e da violência. É um discurso que não gera nem estimula reflexividade, pesquisa, questionamento. É paliativo e imediatista. Simplesmente não se abre para a complexidade do fenômeno da violência urbana.
Portanto, o apetite insaciável por uma legislação mais dura não leva a nenhum futuro promissor e tão pouco a um presente mais seguro. Muito pelo contrário, pois, tratando problemas sociais como questões penais e punitivas, sua consequência é acirrar a polarização social, os estigmas sociais e o controle sobre os mais pobres e vulneráveis e o autoritarismo em toda sociedade. É preciso penetrar mais profundamente na formação social e nas estruturas simbólicas e normativas da sociedade brasileira.