Paulo Freire, na sua e de todos nós Pedagogia do Oprimido, aborda com clareza determinado artifício retórico bastante comum àqueles que costumam tachar de privilégio a extensão de direitos a grupos tradicionalmente vítimas de opressão: a inversão de papéis, colocando-os como opressores tão somente pela sua legítima e intransigente luta contra a deplorável negação de sua humanidade.
“Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o resultado de uma violência?
[…]
Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro.
Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos. Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram. Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram sua humanidade negada, mas o que a negaram, negando também a sua. Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos, sob a robustez dos fortes, mas os fortes que os debilitaram”.
As palavras do patrono da educação brasileira se amoldam sobremaneira aos acontecimentos recentes envolvendo a luta e o reconhecimento de direitos por parte de dois segmentos sociais historicamente marginalizados: o da comunidade LGBT e o dos trabalhadores e trabalhadoras domésticos.
Em ambas as situações, o reconhecimento de direitos fundamentais causou um ensurdecedor alarido por parte de setores da sociedade frontalmente contrários à aproximação da cidadania destes grupos à dos segmentos dirigentes da população; no caso dos integrantes dos grupos LGBT, a união civil homoafetiva, consignada por decisão do STF em maio de 2011, hoje em vias de regulamentação na estrutura cartorária e judicial dos estados; no dos empregados e empregadas domésticas, a realização de direitos trabalhistas que, embora previstos na CLT para os obreiros em geral, não os incluía em seu rol de beneficiários.
Se hoje observamos uma aguerrida militância em prol dos direitos humanos que busca institucionalizar a cidadania LGBT, ocupando espaços de discussão nos mais diversos locais de disputa, trata-se de consequência direta de anos de opressão, preconceito, violência e morte; da triste resistência, enfim, em assegurar aos homossexuais direitos básicos que nenhum malefício trarão aos que deles não puderem usufruir, a exemplo do casamento civil igualitário, dos direitos civis e previdenciários dele decorrentes e de uma legislação específica que os proteja contra toda sorte de violência a que se encontram permanentemente submetidos.
Se hoje assumem com menores embaraços sua orientação sexual e identidade de gênero, adotando uma postura altiva e incisiva na defesa dos seus direitos, tal insurreição – ínfima quando deparada com a violência física, moral e psicológica que sofrem dia-a-dia – vai direto para a conta de uma sociedade tradicionalmente sexista e homofóbica que costuma desumanizar as naturais expressões da sexualidade humana que tenham o atrevimento de destoar dos padrões hegemônicos vigentes.
O alvoroço de líderes e parlamentares fundamentalistas para solapar o reconhecimento de direitos à comunidade LGBT ao distorcer os papéis de opressor e oprimido, alçando seus ativistas como opressores e intransigentes, possui um vocabulário tão superficial quanto a tese que encampam: “classe de privilegiados”, “ditadura gay”, “império homossexual” e “kit-gay” são algumas das patéticas expressões que o compõem e sob as quais se situa o verdadeiro sentido de sua perturbadora indignação: o receio da perda do direito de oprimir, do direito de difamar, de injuriar, de discriminar, de solicitar que se retirem do recinto, de atendê-los mal em estabelecimentos comerciais, de poder não selecioná-los em entrevistas de emprego, de impedir que alcancem sua dignidade por meio de um trabalho digno através do qual possam ascender segundo seu esforço e mérito, além de tantas outras maneiras de discriminação que não convem enumerar.
É disso que mais temem, e irão às últimas para que a sua histórica e confortável posição de opressor permaneça incólume, rechaçando qualquer iniciativa que demonstre o mínimo potencial de comprometer o intocável direito de destilarem ódio e preconceito sob suposto amparo da liberdade de culto e de expressão. Vê-se que Brecht estava mais do que certo quando afirmou que do rio que tudo arrasta se diz violento, mas nada se diz das margens que o comprimem.
Semelhante coisa ocorre com a insurgência patronal médio-classista em desfavor da emenda constitucional que estendeu aos empregados e empregadas domésticas direitos que abrangiam praticamente todo o resto da classe trabalhadora.
Muitos, ao se posicionarem contra a aludida emenda, lançaram mão de um escravagista contorcionismo argumentativo para pugnar o porquê dessa categoria não ser apta a perceber tais direitos, sempre sob o falacioso verniz de que sairia definitivamente prejudicada com a entrada em vigor da nova norma.
Afirmações acerca de que é impossível formalizar os vínculos afetivos com os empregados domésticos, supostamente tratados como alguém da família, bem como de que, com tais direitos, a manutenção do seu vinculo de emprego estaria comprometida, ressaltam o egoísmo dissimulado em mascarar a defesa de interesses exclusivos e não-declarados do empregador: não está ele preocupado em manter o relacionamento pessoal e o emprego dos seus subordinados domésticos, mas sim em perpetuar uma situação de desigualdade e opressão por meio da qual é plenamente favorecido. Almeja, assim, que as empregadas domésticas se mantenham – ou até regridam – à condição de mucamas, alegando, vejam vocês, que isso é para o bem delas.
Tal postura se traveste do que Paulo Freire, também na Pedagogia do Oprimido, chamou de “falsa generosidade”:
“Somente ela [a Pedagogia do Oprimido], que se anima da generosidade autêntica, humanista e não “humanitarista”, pode alcançar este objetivo. Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão. É instrumento de desumanização”
Arautos de um modelo de sociedade bolorento fundado em abjetos alicerces escravocratas que tornam ainda mais evidente a perene opressão de classe que tão bem caracteriza uma sociedade patriarcal e capitalista como a nossa, os herdeiros da Casa Grande possuem mais semelhanças que diferenças com a caterva de fundamentalistas que canaliza suas forças no mesquinho e lamentável intuito de negar direitos à comunidade LGBT, garantindo, para a sua felicidade, a infelicidade alheia.
Aos opressores que buscam transferir sua odiosa pecha os oprimidos e que sobre eles recaem com essa nefasta falsa generosidade, apenas a inevitável resposta que o tempo fatalmente lhes trará: não passarão. Não mesmo.