Continua a discussão, que não ultrapassa a profundidade de uma lamina de barbear deitada, sobre o incremento de cargos de confiança pelos governos do PT e do PSDB. Ambos os lados se acusam do aumento desse tipo de contratação, ambos reproduzem preconceitos. O que se esquece – e esvazia a crítica moralista – é que o comissionado oxigena politicamente o Estado. Ele está encarregado de fazer com que a agenda que saiu vencedora das urnas seja, de fato, efetivada, que ela lubrifique a máquina.
Mas por trás desse senso comum está a noção de que o Estado deve se comportar como empresa. Como se uma organização privada tivesse de conversar com partidos políticos, dialogar com a comunidade e, na medida do possível, representar interesses coletivos. Entendam de uma vez por todas: a decisão tomada por uma empresa é monocrática. Ao contrário de uma prefeitura, por exemplo, que precisa pactuar suas decisões e legitimá-las, através da relação com os demais poderes e a sociedade.
Outra falsa questão que atravessa o debate é a ideia de que uma fábrica é mais eficiente do que uma repartição pública. Ora, se a empresa e o Estado apresentam modus operandi e modus operatum diversos, nada mais justo que se observe também às especificidades no que tange o aspecto da “eficácia”. Enquanto a primeira busca apenas o lucro, a última tem a função de atender aos anseios sociais. A primeira interage com clientes. A última com cidadãos. E aí, não é apenas o prefeito que deve responder pelo projeto a que se propôs implementar. É também o chefe de uma secretaria, de um setor, de uma repartição. O governo tem a obrigação de respeitar a eficácia democrática. Do contrário, enfrentará problemas. A necessidade, no entanto, não gravita na cabeça do lider de uma entidade privada.
Sabemos desde Max Weber que a administração sem política produz uma jaula de ferro da técnica, da burocracia com suas ações automatizadoras, engessadas. Não se trata de relegar a um segundo plano o papel do burocrata, este legitimado por concurso público. Pelo contrário. Ele cumpre a função importantíssima de executar tarefas, de produzir labor especializado. Mas é a sociedade quem vai dizer como deseja que aconteça. É o povo soberano representado pelos partidos que escolheu quem dará a linha, elencará objetivos. E são as agremiações representantes, através dos seus cargos de comissão, quem movimentará o Estado. Sonhar com um governo da técnica implica em defender uma gestão pública aonde os cidadãos não arbitram e seguem a reboque (lembrar da obra “O processo”, de Franz Kafka).
Alias, já vimos esse fenômeno por aqui. Ele veio com o golpe de 1964. É consenso na ciência política brasileira que os militares se caracterizaram por sufocar as demandas populares e canais de representação (partidos, sindicatos, representações estudantis e outros agrupamentos) e instauraram uma ditadura da técnica, uma tecnocracia dos déspotas supostamente mais honestos e esclarecidos (0 resultado desse engodo é conhecido).
E no Estado de exceção a gestão da escola era tecnicista. Não apenas, como se imagina erradamente, a sede principal do poder. No colégio da ditadura não era preciso enfrentar a desigualdade, incluir e conscientizar cidadãos historicamente apartados de direitos. Tanto é que os militares sempre enxergaram no método Paulo Freire um ato de pura subversão, já que o professor defendeu uma pedagogia voltada para o aprendizado integral enquanto ser educando autônomo, capaz de se relacionar criticamente com o seu meio, de forjar uma sociedade cada vez melhor e mais democrática. Para os militares ir a escola significava, simplesmente, aprender a ler, a escrever e apreender – acriticamente, como a máquina de fazer salsichas de Pink Floyd, ou como a Matrix do filme – os ditos valores advindos da chamada (pelos seus defensores) “Revolução de 64”.
No final, a retórica não é confirmada por nenhum dos dois partidos, já que o PSDB, quando foi governo, e o PT, atualmente, aumentaram os cargos de comissão, até para acompanhar o necessário desenvolvimento das demandas advindas da sociedade.
ESQUIZOFRENIA
Há algo de esquizofrênico nesse debate. Pois que ele é capitaneado pela classe média tradicional brasileira, a mesma que ocupa os principais cargos públicos políticos que ela tanto critica. Enfim, um agrupamento social que não se olha no espelho.