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O Nordestino na Globo: novos personagens, velhos esteriótipos

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images (10)Afirmar que as novelas da Rede Globo de Televisão alimentam estereótipos contra nordestinos não é novidade. É um lugar comum. Há décadas, o Brasil inteiro está habituado a assistir nas novelas personagens “nordestinos” de sotaques e trejeitos carregados, meio cômicos e bastante estridentes, fervorosamente católicos, seres rústicos e brutos. Quase sempre encenando aqueles papéis figurantes e secundários, de mera composição do cenário ou do roteiro. A função principal desses papéis nordestinizados consiste na maior parte das vezes em amenizar o drama principal por meio do riso, da troça, do deboche e do escárnio que tais personagens por suas vicissitudes suscitam.

Em geral, os nordestinos na ficção dramatúrgica televisiva brasileira atuam como bobos da corte. Bufões, quer dizer, são os personagens responsáveis por dar um toque menos sério, menos grave e mais ameno e cômico no roteiro de suspense, mistério, na trama de maldades dos vilões e nos sofrimentos dos mocinhos e mocinhas.

Essa função cômica e de bufão pode ser atualmente percebida no personagem de José Loreto na novela Flor do Caribe. Candinho é um excêntrico e um tanto quanto grotesco vendedor de leite que vive uma amizade inusitada com uma cabra, Ariana, sua fiel companheira e confidente. Numa espécie de mistura de Tonho da lua (Mulheres de Areia) e Chicó (Auto da Compadecida), o personagem de José Loreto reanima no imaginário social muitos dos estereótipos consagrados do ser nordestino, tal como outras regiões do país imaginam – e mesmo muitos dos próprios nordestinos.

O laço afetivo com a cabra e o jeito espontâneo, ingênuo e infantil do personagem Candinho assinalam alguns traços da representação social do nordestino, os quais, embora não coincidam diretamente com figura hegemônica do “cabra macho”, reforçam a ligação do nordestino com a ideia do arcaico, do animalesco e do não-civilizado.

Ao contrário dos modernos e civilizados brasileiros do sul e sudeste, entre os habitantes do nordeste do país ainda existiria aquelas espécimes humanas mais puras, inocentes, simples, não contaminadas pelas regras e relações formais da sociedade e da civilização moderna. Candinho é o “bom selvagem” sertanejo, puro e ingênuo, que causa risos por sua espontaneidade atrapalhada e pueril. Mais próximo da natureza do que da sociedade, do estado original e puro do humano, um quase animal, Candinho é o elemento exótico e grotesco num mundo quase que inteiramente civilizado e civilizador. É tratado como a criança que não tem culpa de sua insensatez e imaturidade, e que por suas astúcias provoca a indulgência e a gargalhada dos adultos normais e civilizados.

Assim como outras imagens e visões do nordeste e do nordestino, o que temos aqui é a representação de uma identidade regional negativa, cujo sentido de inferioridade podemos entender a partir da hierarquia simbólica e moral acerca dos sentidos das regiões e das identidades do Brasil. Nessa hierarquia, o nordeste serve como o contraponto e o avesso da autoimagem do sul do Brasil, que seria a região do país definida pela modernidade, pela indústria e pela civilização e seu refinamento ao passo que a primeira seria definida pela tradição colonial, o atraso, o rural, a sociedade do engenho e todo o gestual e caráter inerente a estas; portanto, o nordeste como o espaço não-civilizado do país. Por isso, seus habitantes não seriam os mais ajustados às ocupações e ao modo de ser modernos, civilizados e capitalistas – quão raro é ver empresários, engenheiros e advogados nordestinos nas novelas sem que estes sejam “sudestinizados” na falas, gestos e gostos!

O nordeste e o nordestino marcam o lugar de uma alteridade negativa e inferiorizada em relação à imagem da região sul do Brasil. Seus significados, estereótipos e particularidades ganham sentido no interior de uma hierarquia de valores e imagens cuja função é reafirmar a superioridade civilizatória e demarcar a diferença de uma região particular em relação às demais. É este o inconsciente das produções culturais a partir do qual o nordeste e o nordestino são vistos, encenados, cantados, escritos.

Vejamos outro exemplo de representação do nordestino. Dessa vez, no mundo das ocupações profissionais. Na maior parte das novelas, os nordestinos compõem os papéis de ocupações subalternas e socialmente desvalorizadas, ligadas, sobretudo, ao trabalho manual e precarizado. Eles são as empregadas, os porteiros, os pescadores, o pequeno agricultor, o palhaço, o comediante, o retirante, o coronel ignorante, autoritário e machista e, mais recentemente, as cantoras de forró e brega. Numa referência direta ao lugar e a posição social dos nordestinos na pirâmide das classes sociais e do prestígio das profissões, tal representação é mais um reforço na hierarquia simbólica das regiões e das identidades regionais, isto é, na demarcação da inferioridade do Nordeste.

O nordeste – e o seu habitante “original” – não é um dado natural, existente desde o início da história do Brasil. Conforme, nos mostrou o historiador Durval Muniz, professor de história da UFRN, o nordeste é uma invenção; é o produto da ação de uma gama de discursos e linguagens que desde o final do século XIX criaram um universo simbólico homogêneo de imagens, ideias, concepções, valores e estereótipos acerca do significado do Nordeste e do ser nordestino, e que nos alcança ainda hoje. É o nordeste da Seca e da miséria, do messianismo e do cangaço, do homem rude, feio e flagelado, da região necessitada e subdesenvolvida. Essas diferentes representações cristalizaram no imaginário social particularidades físicas, linguísticas, econômicas, sociais e morais que seriam típicas e características de uma parte do Brasil e de seus habitantes: a região árida e inóspita, o biofísico rústico, resistente, baixo e “cabeçudo”, o sotaque e as expressões “cantadas”, arrastadas e estridentes, pessoas pouco escolarizadas e instruídas mas alegres e engraçadas, imigrantes e retirantes etc..

A origem dessas imagens e representações remonta aos primeiros decênios do século XX e pode ser encontrada nas mais diversas fontes de produção de sentido que se seguiram à reação das elites da regionais – nordeste – às mudanças sociais do Brasil de fin-de-siècle, as quais sacramentaram a decadência política e econômica destas últimas.

No final das contas, e, em boa medida, todos esses estereótipos estigmatizantes sobre o ser nordestino foram uma invenção nossa, de nossas antigas elites políticas e intelectuais e sua nova condição social frente ao Brasil moderno que se consolidava nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. E o que antes, no inicio, tinha um propósito político de contraposição à modernização e à subordinação do nordeste à outras regiões tornou-se a base da reprodução de preconceitos e da ideia de inferioridade do nordeste e do nordestino. Assim, o Nordeste e o nordestino tornaram-se o bode expiatória predileto das elites de outras regiões do país, o nordestino ora o culpado dos “males” do país, ora  como o bobo da corte que nos faz ri desses mesmos “males”.