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O Boicote à Cantina, ou com quantas letras se escreve uma “revolução”

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Por Luci S. Araújo

(Graduanda em História – UFRN)

578621_548958308478082_1919620173_nEu tinha decidido não me envolver neste assunto, até porque algumas pessoas parecem ter preguiça cognitiva crônica. O exercício de compreensão, por vezes, tão necessário, parece que virou adereço de museu. Poucos sabem do que se trata. Poucos ainda fazem questão de usar, outros então, melhor nem comentar.

O fato é que eu não queria me envolver mesmo neste assunto. Enfim, fui tomada por um sentimento de revolta ao me deparar com este panfleto, e só por isso, por este sentimento conflitante que me tomou pelo braço, resolvi falar o que penso acerca da mobilização contra a cantina do setor II – UFRN.

Antes de qualquer coisa, em nome do bom senso, dos deuses da comunicação – esta que é tão necessária, ou até mesmo do que for mais sagrado para cada um, espero que antes de qualquer julgamento sobre o que for dito por mim, as pessoas parem um pouco, reflitam sobre o que foi dito, e depois disto então façam valer a sua liberdade de expressão. Sim, sou destas que ainda acreditam que todos devemos ter a liberdade para expressar nossas opiniões, sentimentos, desejos. Por isto mesmo que tento fazê-lo aqui.

Vamos lá… esta parte introdutória foi o KY do texto. O grosso vem agora.

Bem, como dito, eu acredito que toda luta é válida. Afinal, como estudante, como cidadã, entendo as necessidades e anseios dos colegas, e concordo com a luta. O que não concordo, e quero que isto fique muito claro, é com este absurdo que está na imagem compartilhada. Sim, não concordo e vou expor meus motivos. Guardem as pedras. Ainda não é tempo de usá-las.

Concordo que, enquanto estudantes, o direito de termos opções de lanches saudáveis, e com preços acessíveis ao nosso padrão de vida é inalienável, por falta de uma palavra melhor – e estudante não tem dinheiro. Todo mundo tá careca de saber. Concordo que os ambulantes devem sim vender seus produtos no setor II – e nos demais setores.

Posto acima o que eu concordo, para que fique muito claro para os colegas sobre o que estou falando aqui. Agora sim, eis que exponho minhas críticas ao modo como escolheram lutar por seus (nossos) direitos.

Não lembro onde, e também não me forcem a dizer, mas alguns estudantes difundiram a ideia de que a Dona da Cantina não atendia muito bem seus clientes. Outros pontos usados na argumentação foi de que a Dona da Cantina não tratava muito bem seus funcionários. Daí em diante, muitas crônicas, anedotas e outros recursos narrativos foram usados como argumentos para legitimar o discurso abaixo. Entre vários chavões, o que mais me chamou atenção foi o uso, de uma parte dos estudantes, consumidores dos produtos da cantina, a expressão “nós estamos defendendo o direito dos trabalhadores. Estaremos sempre do lado do trabalhadores” (sic), aí sim, se referiram aos ambulantes como a classe que representaria o que estes alunos entendem por trabalhadores.

Fico admirada em ver que diante de argumentos tão bonitos, mesclados de uma tinta ideológica de uma pseudo esquerda, as pessoas, nesta mesma cegueira ideológica partidarista, retrógrada, não percebam o papel que estão desempenhando na universidade. Eu me recuso a concordar com atitudes mascaradas de alguma politização, cujos fins são meramente pessoais e partidários.

Confesso que fiquei triste por saber de amigos, pessoas com quem converso diariamente, concordando com este absurdo. Oras, até que me provem o contrário, esta é uma das ações mais infantis que já vi nesta universidade – e olha que já vi muita coisa ao longo destes anos.

Uma coisa é você querer que os ambulantes permaneçam no setor, que vendam seus produtos, porque isto eu também apoio. Outra, totalmente diferente, é transferir a responsabilidade para uma trabalhadora, que tá ali apenas querendo o mesmo que os ambulantes. Ou vão me dizer que por ela ser a dona da cantina, e ter funcionárias, ela se torna menos digna de nossa compreensão? Desde quando a esquerda brasileira passou a pensar de modo tão medíocre?

As três funcionárias que atendem na cantina, que por sinal são mulheres, mães, dependem daquele serviço, daquele emprego para manter sua independência financeira, e também para poder oferecer uma qualidade de vida digna para seus filhos. E não frisei o “mulheres, mães”, apenas porque sou feminista. É sim porque sou feminista, mas também porque sou mulher e filha. Entendo perfeitamente o que a sociedade cobra de nós, e as dificuldades que estas mulheres (algumas mães solteiras) enfrentam para estar ali.

Os nobres colegas que usaram como argumento o tal “estamos pensando nos trabalhadores”, também pensaram nestas três funcionárias? Ou elas são menos digna de vossa reflexão que os ambulantes?  Qual é a diferença? Por que esta distinção? Eu entendo trabalhador@s no plural mesmo, sem fazer distinção de gênero, orientação sexual, cor ou que seja. Enfatizo a questão delas serem mulheres, porque já que os colegas são militantes da esquerda brasileira, creio que sabem o papel histórico que as mulheres só passaram a assumir a pouco menos de 200 anos.

Não tenho palavras para dizer o quanto estou chocada com a maneira animalesca que resolveram tratar a questão dos ambulantes no setor II. Qualquer pessoa que use o mínimo de racionalidade saberá que a responsabilidade não é da Dona da Cantina, mas sim, da diretoria do Centro (CCHLA) que, inclusive, havia dito na época de campanha eleitoral que resolveria este problema, criando um espaço próprio para os ambulantes. A responsabilidade é da Reitoria. São estas instâncias de poder que devem ser questionadas, cobradas, e no caso, boicotadas – como queiram – a fim de buscar alternativas e soluções para o impasse a que chegamos sobre o consumo e os serviços alimentícios oferecidos em nossa universidade.

É desumano o modo como os colegas da mobilização #bocoiteacantina resolveram agir, “pensando” em alguns trabalhadores e esquecendo de outros. Nestes anos de universidade não vi a Dona da cantina tratando os funcionários de modo inadequado. Só perguntar as próprias funcionárias que, inclusive, convivem com a mesma como se fossem da família, partilhando momentos de sociabilidade nos fins de semana. Sei disto porque melhor do que o “disse-me-disse”, eu fui atrás, conversei com as moças. A dona da cantina sempre me tratou de modo cordial. Sempre fui muito bem atendida lá.

Então, colegas que pensaram nesta ação tão infantil, quando uma das funcionárias da cantina (ou mais de uma) for demitida, não tiver mais emprego, espero que reflitam que vocês auxiliaram no processo que vocês atribuem ao capitalismo. Uma coisa é não querer comer na cantina, até pelo preço dos produtos. O que eu concordo. Afinal, cada um usa seu dinheiro onde, e como bem quiser, mas organizar um boicote sem ponderar os verdadeiros alvos e as prováveis consequências sobre aqueles que quase nada ou nada tem a ver com a situação?

O que espero, do fundo do meu coração, é que os estudantes, os que se dizem militantes da esquerda brasileira, por favor, comecem a usar o bom senso. Direcionem sua energia para as instâncias que são responsáveis neste caso, e não direcionem suas frustrações para uma trabalhadora, que está ali apenas querendo ganhar seu dinheiro de modo digno. Ou vocês acham que a dona da cantina é uma mega empresária, uma burguesa, dona de várias cantinas?

Espero, sinceramente, que falemos menos, e que Marx seja colocado em prática. Antes do econômico, é o humano que me interessa. E francamente, colocar uma mulher como “bode expiatório” para responsabilidades que ela não tem, nem sei o que dizer, porque sempre espero mais dos seres humanos.